sexta-feira, outubro 31, 2008 |
Ver e não remediar é não ver |
Em jeito de comemoração, desenterrando conforme a sugestão do Pedro, uma mensagem do Trento que me parece permanente, mas ainda como memória das várias e estimadas almas que por cá passaram, encontrei este post do Luís. O escrito remete também para o José e para o Tiago Cavaco, no comentário do Tiago Oliveira, e ainda para o Timshel na reacção do saudoso - o melhor dos católicos na minha opinião, que ma perdoem - tudo gente (só faltando o Carlos Cunha) que me provoca a lembrança triste e suave dos amigos distantes. Mantive o texto, alterei a forma. A crítica permanece assentando-me com católica perfeição, para meu próprio pesar. cbs
Caro José, confesso que não pude deixar de ter um sorriso nos meus lábios ao ler este teu post. Em primeiro lugar, porque concordo com o Tiago Cavaco: "abençoado protestantismo". Depois não pude deixar de verificar uma curiosidade que desmascara o que dizes. Então vejamos: O católico, segundo dizes nas palavras de Flannery, considera que a voz de Deus é apenas ouvida através da santa madre e, como tal, tudo o que acredita como verdade é o que a igreja diz que é verdade. O católico diz que o papa é o representante de Cristo na terra e quando fala é como se Cristo falasse. O protestante, por seu lado, embora respeite a igreja, considera como responsabilidade sua analisar todas as coisas e se considerar que Deus espera algo dele falo-á independentemente da igreja estar ou não com ele. Pois é meu caro, o cómico em relação a isto é o seu resultado prático. O católico considera aquelas coisas em relação à igreja e ao papa, no entanto desrespeita a igreja, da qual diz ser a detentora da voz de Deus, a cada passo que dá. Veja-se os católicos aqui do blog. Retirando uma ou duas excepções, o católico pensa como lhe apetece, vive como muito bem entende, mas diz que Deus apenas é ouvido através da santa madre. Cómico não é? Vejam-se as diferenças doutrinais que se verificam neste blog entre os católicos e essa frase que colocas só dá vontade de rir. Vocês discordam do papa a torto e a direito, mas dizem que ele é como Cristo, é o seu representante. Belo respeito que têm por Cristo. Se alguma marca se pode atribuir à maior parte dos católicos é que a igreja não tem qualquer influência sobre a sua vida. Para um católico é normal dizer que o papa está errado (o que segundo a doutrina católica é o mesmo que dizer que Cristo está errado). Pelo contrário, o protestante acredita no que já mencionei. No entanto, a ironia disto tudo é que, com todas as diferenças de opinião que temos, verificarão que um protestante respeitará muito mais a igreja do que um católico. Por exemplo, os baptistas que aqui postam afirmam professar os princípios baptistas. O ensino da igreja foi, na realidade, importante e formador do que são enquanto pessoas hoje. A conclusão prática disto é que eu sou baptista e professo as doutrinas baptistas. Vocês são católicos e professam o que muito bem entendem e estão-se perfeitamente a marimbar na prática das vossas vidas do que o papa ou a igreja pensam sobre elas. Caros católicos, respondam a esta simples pergunta: quantos de vocês católicos aqui professam integralmente os ensinos da santa madre (que é, segundo o José e a Flannery, os ensinos do próprio Deus)? Tiago Oliveira
Embrulhemos pessoal. Embrulhemos que coisa mais certeira não se escreveu neste blog desde que há memória. Isto devia ser emoldurado e colocado como filactério na fronte da nossa intelectualidade católica bem-pensante. Só tenho pena do Tiago se ter adiantado a mim já que iria escrever coisa parecida na continuidade deste post criticando ainda um pouco da casuística jesuítica empregada pelo Timshel (que amigavelmente desperta o jansenista que há em mim). Respondendo à tua pergunta (e descontando essa de que quando o Papa fala é como se Cristo falasse, que não é verdade) eu professo integralmente os ensinamentos da Santa Madre e tento viver de acordo com eles. Mas sei que são poucos os que o fazem em particular em determinadas matérias sensíveis (e antes isto fosse arrogância, antes fosse), especialmente na "intelectualidade" católica neste país (não é assim noutros). Isto cria a mais nojenta (sim, nojenta) consequência da casuística jesuítica que Pascal criticava nas suas cartas provinciais, a de que os pobres e desgraçados que levam a sério o que a Igreja diz são esmagados pelo peso das suas culpas e a gente bem-pensante e influente safa-se de viver de acordo com o que quer que seja recorrendo aos "casos particulares". Ou isso ou então consolam-se moralmente por se admitirem como grandes pecadores numa pretensa humildade sem mexerem uma palha para repararem a mais pequena falta. Também era o Pe. António Vieira que dizia coisas como "Ver e não remediar é não ver" ou "Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes?", ou ainda "Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter?". Não é um apelo ao puritanismo exacerbado, mas a um mínimo de exemplo moral consequente e de autêntica vivência de Igreja que impliquem verdadeiras escolhas de vida. Luís |
posted by @ 5:07 da tarde |
|
|
Dois anos |
Para um protestante é fácil fixar a data. Foi também num 31 de Outubro, há 491 anos, que Martinho Lutero pregou as 95 teses na porta da Catedral de Vitemberga. Não podia passar sem nota, portanto, o segundo aniversário do Trento na Língua. Muita coisa aconteceu por aqui nestes dois anos. Entradas e saídas, murros e abraços, palavras mortas e palavras vivas. Cismas até. Mas não quero, nem me sinto competente para, fazer um balanço. Proponho apenas que, em jeito de brinde, façam como eu: uma visita ao arquivo, aqui na coluna da direita, e desenterrem um pouco do que se tem escrito no Trento. E depois, se quiserem, digam de vossa justiça.
Pedro Leal |
posted by @ 12:53 da tarde |
|
quarta-feira, outubro 29, 2008 |
Ser santo, hoje |
Não é uma questão de «querer» ser santo (…) É-se «chamado» por esse Espírito que, «com gemidos inefáveis» (Romanos 8, 26), clama em cada crente: «Abba, Pai» (Gálatas 4, 6). Sem este grito do Espírito no mais íntimo do crente, clamor tantas vezes ignorado pelo próprio, nenhuma santidade é possível – porque este é o grito da conversão, o grito do pródigo ansiando pela casa do Pai. E só o pecador consciente do seu pecado escava suficientemente em si para libertar as profundidades de onde se eleva o clamor inefável do Espírito – esse grito humanamente indizível, capaz de libertar o coração do homem e rasgar o coração de Deus, fazendo-O derramar-Se em torrentes de misericórdia e perdão. Eis por que o chamamento à santidade feito a cada crente é, em primeiro lugar, um apelo à misericórdia de Deus – apelo sempre atendido, mas nem sempre correspondido.
A santidade não é coisa pouca. Precisa, no entanto, de pouca coisa da nossa parte. (…) Descobrir o Espírito Santo e iniciar uma relação pessoal com Ele inverte os dados do problema, pois a tarefa revela-se de Deus. Ao crente cabe-lhe deixar brotar no seu íntimo o grito do Espírito. Se o fizer, entrará numa luta sem tréguas – consigo e com o mundo; mas quem batalha é o Espírito Santo nele, com «gemidos inefáveis». Enquanto assim for, só poderá haver um vencedor. E será possível ser santo, hoje. Elias Couto
“Assim também: que a vossa luz brilhe diante dos homens, para que vejam as boas obras que fazeis e louvem o vosso Pai que está nos Céus” do sermão da montanha em Mateus 5, 16 O que é um Santo? É um homem que brilha quando a Luz o atravessa cbs
|
posted by @ 9:43 da tarde |
|
segunda-feira, outubro 27, 2008 |
Uma Santa |
"Em 1971, quando tinha 63 anos, a Irmã Emmanuelle decidiu compartilhar sua vida com os pobres do Cairo, motivo pelo qual era conhecida como a irmãzinha dos mendigos.
«Falava de maneira directa e esta era uma das qualidades pela qual todos a amavam. Nas favelas de Ezbet-Nakhl, no Cairo, ela entregou-se totalmente para construir escolas, asilos e casas de acolhimento. A associação que tem o seu nome (Asmae-Association Soeur Emmanuelle), fundada por ela mesma em 1980, continua a ajudar milhares de crianças pobres no mundo inteiro», constata L'Osservatore Romano.
Deixou o Egipto em 1993, aos 85 anos, e regressou a França, estabelecendo-se na comunidade de Nossa Senhora de Sião, congregação na qual havia entrado aos 20 anos, dedicando agora o seu tempo à oração e à meditação, sem deixar nunca o apoio aos sem-tecto e aos imigrantes sem papéis.
Licenciada na Sorbonne, a Irmã Emmanuelle havia sido professora de filosofia e letras em Istambul, Tunísia, Cairo e Alexandria."
Artigo noticiando a morte de uma Santa (que ainda não o é) (ou já o é há muito tempo?)
timshel |
posted by @ 6:58 da tarde |
|
|
Recordação |
A primeira vez que rezei, tinha cerca de nove ou dez anos. Foi evidentemente bastante estapafúrdio, de algum modo vergonhoso segundo a etiqueta comportamental do mundo e da razão, pelo menos relativamente ao parco conhecimento que tenho dos seus modos de acontecerem e agirem. A mim, Ele não precisou de dizer para fechar a porta.
Aconteceu que um colega de escola, que tinha sempre notas acima de 14 me disse quando o inquiri acerca do seu método: Na véspera dos testes, rezo e peço a Deus que me dê sempre boa nota.
Não me falou de estudar, ou reflectir, ou assim me lembro eu: pois então rezo, peço ao Senhor do universo, é evidente, para quê perder tempo com circumnavegações, vou a corta-mato, directo ao assunto, então pois… rezo. E foi o que, sem fazer a mínima mas com a audácia e disponibilidade da infância, me dispus a fazer pela minha parte, e pelo mesmo assunto, não fosse alguma improvisação afectar a verificação da Sua existência - digo eu agora, algo indiciado pelo toque absurdo de, gostando eu na época de estudar, conversar e reflectir, obter geralmente as notas a pedir ao Improvável e Totalmente Desconhecido. Nem sequer usei o mediador Jesus, penso eu, não tivera catequese oficiosa, e além disso não se tratava de ir a corta-mato directo ao assunto?... Lembro-me de pôr-me de joelhos junto à cama, fechar os olhos e concentrar-me, falando e escutando no profundo silêncio da Sua ausência.
Imaginemos agora, visto que se ressente o passado na configuração do presente, que funcionava – enquanto pedido, obtenção, requisição. Pois nada disso ressinto eu agora como fulcral na recordação – a não ser como instigação à suspeita da Sua improvável mas interpelante existência. Até porque acabamos por perceber que o que se obtém e não obtém por aqui tem o valor da efemeridade, varrido e disperso como quase nada pelo nosso amigo tempo. E recordo-me como confusamente desejando não essencialmente os pedidos específicos, mas a esperança e anseio indefinido de algo que rasgasse a efemeridade, a existência à mercê dos dias cegos. Qualquer coisa que não tem nome por aqui.
Rezar serenava a violência melancólica da minha infância, depondo-me noutra violência em que a melancolia se transmuda em busca e apelo.
Não se trata aqui de relevar o que de supersticioso e egótico e ilusório e preguiçoso e cobarde pode haver nas orações como em todas as nossas atitudes e actividades, mas sim de entrever o Algo que pode surgir nessa actividade da oração, na atitude religiosa, e que vem pôr em interrogação essa actividade e essa atitude assim como todas as outras. É nos nossos gaguejos humanos demasiado humanos que acabamos por tropeçar para fora e dentro de nós, onde uma mão nos agarra ou o nada nos dissolve. A que corresponde a actividade da oração e a atitude religiosa – as respostas são tantas quanto as concepções de realidade.
Lembro-me que acabei por deixar de rezar, aquilo assustou-me, era por assim dizer demais para mim – acabei por deixar de rezar, durante cinco ou seis anos.
Isto tem sido uma difícil catequese.
Até porque com Ele nada funciona sempre da mesma maneira, não estamos de todo no reino da necessidade e do automatismo.
E o barco prossegue, puxado pela graça e pela confusão.
Vítor Mácula |
posted by @ 11:35 da manhã |
|
sexta-feira, outubro 24, 2008 |
Madridmemata :) |
yatusabesMadrid but God is my co-pilot cbs
|
posted by @ 11:07 da tarde |
|
quarta-feira, outubro 22, 2008 |
|
- Senhor cura O padre a mirar a pistola saída em pressa do bolso e a culatra que deslizou para trás e aceitou uma bala, a buscar auxilio mas nem vozes nem pessoas, deu-lhe ideia que um rafeiro e todavia nenhum bicho nas travessas, só ecos, o dos ramos das nogueiras, um banquito que deslocaram para ver melhor os retratos - O padre Sem que o feitor os notasse, a lagoa fervia como sempre em março com os girinos novos e abelhas incompletas a aprenderem a ser, o padre para o feitor - Para que queres a pistola? E o feitor a persignar-se depois de lhe pedir a confissão - Para o ajudar a partir senhor cura Não exaltado, respeitoso que o Inferno assusta, quase nenhum olmo vibrou com o primeiro tiro esmagado na cancela, o feitor a ajudar a pontaria com a outra mão - Já me absolveu não já? E a disparar de olhos fechados, sentiu o padre de joelhos, ganhou força para abriri os olhos, viu-o de cara na terra e como estava absolvido abriu a navalha e cortou-lhe o pescoço até à resistência das vértebras, pensou melhor e trocou os sapatos com os do morto apesar do pe esquerdo difícil de entrar e agora as doninhas e os texugos que o comam…
António Lobo Antunes, O arquipélago da insónia, Dom Quixote 2008 (p.35) cbs |
posted by @ 9:07 da tarde |
|
|
Cristo carregando a cruz |
Clique para Aumentar
Inspiração: Hieronymus Bosch
Paulo Ribeiro |
posted by @ 10:06 da manhã |
|
terça-feira, outubro 21, 2008 |
A questão do “eu posso” 2 |
Um louco que se toma por rei é um louco, dizia Lacan. Um rei que se toma por um rei não o é menos. Mas não é do poder de um rei, do imperador ou do perfeito romano que aqui se trata, é de qualquer poder, em geral, e, em primeiro lugar, destes poderes elementares que a fenomenologia da carne reconheceu serem constitutivos da nossa corporeidade originária e cujo exercício reiterado assegura o sustento e o desenvolvimento de toda a existência humana.
Condenar um homem à crucifixão, isso supõe outros homens, homens com mãos, soldados, carrascos, assassinos, e em cada um deles, a capacidade de prender, apoderar-se de um objecto ou de um corpo, bater, enterrar, erguer – capacidade sem a qual crucifixão alguma, jamais, teria tido lugar. São todos esses poderes indistintamente, apesar da hierarquia, do desprezo ou do prestígio de que se revestem aos olhos dos homens, que são desprovidos de todo o verdadeiro poder, porquanto cada um deles não tira o poder de si mesmo, mas só de uma doação em relação à qual não há poder algum, nem mesmo, vimo-lo, o de aceitar ou de recusar.
De onde vem esta doação? Do alto, diz Cristo. E isto quer dizer, em primeiro lugar, que nenhum homem, com efeito, detém qualquer poder, pois que este nunca é de si mesmo que o recebe. Michel Henry, Encarnação uma filosofia da carne, p.195
Leio pois, somos livres mas... só com Deus; ou por outra, o poder é dado do Alto (da Vida Absoluta) e está presente em baixo (a vida humana), tanto no mero acto de fechar a mão, como no de pregar um cravo... Mas se essa liberdade consumar a separação (da Vida), o resultado é o Fim (a Morte). Daí o resgate do Homem, a Encarnação que religa a carne. Pergunta Pilatos: És rei?; Cristo responde: És tu quem o diz. E aos apóstolos: Sem Mim nada podereis fazer;
Precisamente... nada podereis fazer, absolutamente nada! cbs |
posted by @ 12:37 da manhã |
|
|
A questão do “eu posso” |
A fenomenologia da carne reconduziu-nos da nossa abertura ao mundo, pelas prestações transcendentais dos nossos diferentes sentidos, à auto-impressionalidade destas, na carne da vida. É só em virtude desta auto-doação patética que os nossos sentidos pertencem a uma carne e que tudo o que é dado neles, o conteúdo sensível da nossa experiência que reportamos às coisas enquanto suas qualidades próprias, se verifica ser originariamente e em si composto de “impressões”. Ora esta auto-doação patética dos nossos sentidos na vida tem uma outra significação decisiva: a de fazer de cada um deles um poder. Este não se limita à produção, em nós, de um contínuo de impressões originárias ek-staticamente, referidas ás coisas, mas é, em primeiro lugar, o poder de se exercer. Eu posso abrir os olhos para o espectáculo do universo, prestar atenção ao barulho distante, passar a mão por uma superfície lisa ou por uma forma torneada – “eu posso” fazer tudo isto e muitas outras coisas. Mas todos estes poderes diferenciados e específicos, com que a nossa vida quotidiana exprime o exercício imediato e contínuo, trazem neles, a titulo de pressuposto insuperável, um poder mais antigo, o de pôr em exercício, de passar a acto e de, constantemente, poder fazê-lo. Assim é preciso reconhecer em cada um deles, implicado por ele, ainda que indiferente à sua especificidade, o reino deste “eu posso” original, sem o qual nenhum poder em geral, nenhum dos poderes do nosso corpo Seria possível.
Michel Henry, Encarnação uma filosofia da carne, Círculo dos leitores 2001 (p.193)
cbs |
posted by @ 12:07 da manhã |
|
segunda-feira, outubro 20, 2008 |
Equivocatio. |
Pensei que, no que respeita à soteriologia, os católicos-romanos fossem católicos-romanos, mas não - eles são arminianos. No tempo da contrarreforma, a salvação do homem vinha pelos 'meios da graça', que eram os sete sacramentos da igreja romana - e nunca por Tiago Armínio.
Amaria se os católicos-romanos voltassem a ser evangélicos, mas não maus evangélicos. Antes, evangélicos do Evangelho, que lêem Efésios 2:8-9, e repetem, em reverência:
'Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie'.
Ámen.
Nuno Fonseca |
posted by @ 4:51 da tarde |
|
|
Do servo e livre arbítrio |
Na relação do divino com o mal, a nossa tendência é balançar para um dos lados do problema, ilusoriamente tranquilizando a tensão aporética nas nossas cabecinhas ilustradas – ou o divino decide e decreta o mal e a condenação (palavras do coração endurecido); ou não há mal originário nem condenação universal (palavras do coração amornado).
Catolicidade: manter a noção do pecado original, separação universal do género humano com o divino (a crueldade e isolamento egoísta das crianças, senhores); manter igualmente a lucidez de que, intrincados ao mal fulguram a beleza e a bondade, que espelham em acto o divino (o divino em acto espalham todas as belas e boas obras, senhores).
Escolher um dos polos em detrimento do outro, heresia é; o que também não tem a gravidade histérica que os corações endurecidos pretendem; nem a indiferença muda que lhe atribuem os de coração morno.
Só o fio do funâmbulo, detém o sentido.
Vítor Mácula
|
posted by @ 10:29 da manhã |
|
domingo, outubro 19, 2008 |
O Mal "natural” 2: afectividade e revelação |
Sentir-se a si mesmo, ser afectado por si mesmo revela o ser e a possibilidade de Si. Na origem de toda a afecção e, portanto, de toda a experiência como condição, encontra-se não um sujeito puramente lógico, mas a ipseidade afectiva do sujeito, o seu ser em si. Na sua efectuação fenomenológica, a passividade ontológica originária é a paixão ou pathos do ser. Por sua vez, a afectividade que determina o ser a ser, aparece também ela na sua realização como o sofrer do Si.
A afectividade é, pois, «a essência original do logos» irredutível à linguagem do mundo e do pensamento, o logos da vida. Captar este logos original compete à tonalidade afectiva, ao sentir que constitui o sentimento. A experiência de si como experiência da impotência perante o sofrer, como adesão perfeita a si e a aquisição irrevogável de si equivale ao surgir da revelação. E o que então acontece “no triunfo deste eclodir, na fulguração da presença, na parusia e, enfim quando, em vez do nada, há qualquer coisa, é a alegria” (1)
Mas esta alegria, ao invés de um entusiasmo qualquer, de uma excitação psicológica, não vem depois do ser, mas é-lhe consubstancial, fundamenta-o e constitui-o. A alegria é uma estrutura ontológica, o modo segundo o qual o ser se historializa, o seu devir e o seu surgir em si mesmo no ajuntamento edificador da parusia, ela é própria parusia, a sua fenomenalidade original e a sua afectividade.
Manuel Barbosa da Costa Freitas
(1) Michel Henry, Léssence de la manifestation, Paris PUF 1963, p. 831 ;
Esse choque perante a Dor, perante a experiencia do Absoluto, que Henri vê como um júbilo, o sentir a presença Dele, pode ser, e é muita vez, igualmente insuportável, ou seja, a intensidade pode desintegrar a frágil personalidade humana, se não estiver "religada" pela Graça de Deus. É mais ou menos assim que vejo a Dor dos "males naturais", que são condição dada da existencia, e não se confundem com os "males do Mundo" de São João, esses resultantes da nossa livre escolha a que chamamos "pecados". cbs
|
posted by @ 3:37 da tarde |
|
sábado, outubro 18, 2008 |
O Mal "natural” 1: a condição do sofrimento em Si |
“Exterioridade, diferença, alteridade, tais são as formas do ser, as condições que presidem à sua aparição e que sujeitam o seu devir a um processo de alienação” (1)
Como escreve Gabrielle Kowalska, vendo-se, opondo-se, opondo-se a si mesmo, o ser comporta na sua unidade uma dualidade, na sua identidade uma diferença. É neste contexto e em oposição a uma visão do ser que considera errada, que Michel Henry constrói uma filosofia do Absoluto, elaborando um conceito de fenómeno divergente da fenomenologia clássica. Segundo Henry, o ser manifesta-se numa manifestação que repousa em si mesma: “a essência do ser é a manifestação de si. A manifestação de si é a essência da manifestação, é originária” (2)
No seio da pura experiência de si manifesta-se a passividade radical da essencia em relação a si própria. Esta passividade determina concretamente a revelação originária do ser na sua unidade. Ser si mesmo, essencialmente passivo em relação a si, constitui a essência da vida e, sempre que esta designa a experiência de si - a própria revelação - designa a essência do espírito. (3) Esta revelação original da essência constitutiva da sua realidade é invisível, não porque se situa para além do visível, mas porque, cumprindo-se numa esfera de imanência radical, dela não se destaca ou isola para brilhar diante de si na transcendência da representatividade. A esta experiência de radical invisibilidade anda ligada a experiência da afectividade, melhor, da auto-afectividade ou afecção pura, o que se sente sem ser por meio dos sentidos, e que Henry define como o “sentimento originário que a essência tem de si mesma”. (4)
A identidade do afectante e do afectado dá-se na afectividade Manuel Barbosa da Costa Freitas citado por cbs
(1) Dufour-Kowalska, G. Michel Henry. Une Philosophie de la vie et de la praxis, Paris 1980 (2) Michel Henry, Léssence de la manifestation, Paris PUF 1963, p. 173 (3) Michel Henry, Léssence de la manifestation, Paris PUF 1963, p. 367 (4) Michel Henry, Léssence de la manifestation, Paris PUF 1963, p. 577
|
posted by @ 3:37 da tarde |
|
sexta-feira, outubro 17, 2008 |
Bíblia à mão |
“Durante 20 dias, os bispos tentarão concertar estratégias para acabar com a desligação da Bíblia por parte dos cristãos católicos. Este interesse é recente, posterior ao Concílio Vaticano II. Conheço uma freira a quem a superiora tirou a Bíblia, quando, na década de 50 do século passado, chegou ao convento. Em 1713, o Papa Clemente XI condenou como errada a seguinte afirmação: "A leitura da Sagrada Escritura é para todos." (…) Não se pode esquecer que a Bíblia é constituída por 73 livros - 46, no Antigo Testamento e 27, no Novo - e que o processo da sua formação e redacção durou mais de mil anos. Trata-se, pois, de uma obra de muitos autores, a maior parte deles desconhecidos, tornando-se assim claro que, em ordem à sua compreensão, é necessário conhecer a história dos textos, as línguas em que foram escritos, os lugares, os tempos, os géneros literários e os contextos em que foram redigidos e os destinatários a que se dirigiam, e ainda atender à sua configuração final. O Sínodo tem consciência do trabalho ingente neste domínio. No documento que serve de introdução e preparação dos seus trabalhos, lê-se: "Não faltam os riscos de uma interpretação arbitrária e redutora, resultantes sobretudo do fundamentalismo, que faz com que, por um lado, se manifeste o desejo de permanecer fiéis ao texto, mas, por outro, se ignore a própria natureza dos textos, caindo em erros graves. E, depois de alertar para o perigo das "chamadas leituras ideológicas", conclui: "Nota-se, em geral, um conhecimento fraco ou impreciso das regras hermenêuticas."
É interessante notar como, apesar da mudança radical de paradigma – não parece hoje possível impedir a leitura da Bíblia, se mantêm as tendências de sempre. A Bíblia é para ser dissecada pelos especialistas nas academias e depois entregue, bem digerida, aos crentes? Ou cada crente pode alimentar-se nela directamente (o que não exclui, claro, hermenêuticas, exegeses, igreja e pastores)?
Pedro Leal |
posted by @ 9:53 da tarde |
|
terça-feira, outubro 14, 2008 |
Sto Agostinho não escolheu defender a predestinação e negar o livre-arbítrio do homem. Foi escolhido. |
"Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: 'Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu quem vos escolhi' (João 15:16). Pois, se fossem eleitos porque creram, tê-lo-iam escolhido antes ao crer nele e assim mereceram ser eleitos. Evita, porém, esta interpretação aquele que diz: 'Não fostes vós que me escolhestes'. Não há dúvida que eles também o escolheram, quando nele acreditaram. Daí o ter ele dito: 'Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi', não porque não o escolheram para ser escolhidos, mas para que o escolhessem, ele os escolheu. Isso porque a misericórdia se lhes antecipou segundo a graça, não segundo uma dívida. Portanto, retirou-os do mundo quando ele vivia no mundo, mas já eram eleitos em si mesmos antes da criação do mundo.
Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: 'Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo?' (Efésios 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: 'Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi'. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele.
Consequentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, os que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou os que predestinou e não a outros, justificou os que assim chamou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Romanos 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim.
Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. Diz o apóstolo Tiago: 'Não escolheu Deus os pobres em bens deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam?' (Tiago 2:5). Portanto, ao escolher, fá-los ricos na fé, assim como herdeiros do Reino. Pois, com razão, se diz que Deus escolheu nos que crêem aquilo pelo qual os escolheu para neles realizá-lo.
Pergunto: quem ouvir o Senhor, que diz: 'Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi', terá atrevimento de dizer que os homens têm fé para ser escolhidos, quando a verdade é que são escolhidos para crer? A não ser que se ponham contra a sentença da Verdade e digam que escolheram antes a Cristo aqueles aos quais ele disse: 'Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi'."
- Sto Agostinho, Gratia (vol. II)
Nuno Fonseca |
posted by @ 7:47 da tarde |
|
domingo, outubro 12, 2008 |
D. António Marto, Bispo de Fátima |
"Não basta tomar medidas apenas para manter o sistema financeiro. O mercado financeiro, através de investimentos socialmente responsáveis, deve ser reorientado para o serviço de uma economia produtiva, que tenha em conta as exigências ambientais. É urgente rever os sistemas de remuneração e gratificação dos dirigentes de instituições financeiras, sobretudo quando contribuíram para a actual crise, e que são verdadeiramente escandalosos”. É necessário também uma reflexão ética sobre as práticas especulativas que visam a instabilidade e a rentabilidade económica máxima a curto prazo. Em Portugal existe um desnível, um fosso, entre ricos e pobres dos mais altos da Europa."
D. António Marto criticou também um sistema financeiro que vive da avidez do lucro imediato e que faz sobressair a necessidade de criação de instituições nacionais e internacionais de orientação e regulação dos mercados financeiros:
“Quando a finança se põe a si mesma como fim na avidez do lucro imediato, perde a cabeça. E as primeiras vítimas são os mais pobres ou mais desfavorecidos”.
timshel |
posted by @ 8:47 da tarde |
|
|
Por que não pode um homem julgar. E por que um outro deve. |
O pior erro de quem acusa o outro de presunção por mostrar certezas é nem supor que este possa estar certo.
O mais crasso problema de quem critica o amigo por este julgá-lo é não compreender que nisto o próprio faz um juízo de valor ao reprovar o julgamento amistoso do primeiro.
A melhor contradição do antifarisaico é censurar toda a disciplina teológica, não percebendo que o fariseu não era réprobo por instruir na Palavra, mas sim porque não foi chamado para reconhecer a voz do Autor dela:
'Mas vós não credes, porque não sois das Minhas ovelhas. As Minhas ovelhas ouvem a Minha voz, e Eu as conheço, e elas Me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e jamais perecerão; e ninguém as arrebatará da Minha mão' (João 10:26-28).
O julgamento farisaico não pecava pela sua objectividade; porque sim, a adúltera merecia ser apedrejada. O problema estava na sua subjectividade: o fariseu era fariseu. E ao fariseu não foram dados olhos para ver, nem ouvidos para escutar, nem um coração que não resistisse ao Espírito do discernimento que pede que julguemos todas as coisas. A injustiça da lapidação da mulher imoral residia no juíz, e só depois na sua omissão: a falta do cúmplice masculino que morresse ao lado da criminosa. Assim, o farisaico não desejava repreender o herege em obediência ao Senhor, mas apenas uma desculpa para ser hipócrita:
'Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós. E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão' (Mateus 7:1-5).
Após trave removida, então sim, se pode remover o argueiro da vista fraterna; ou seja, julgá-lo. Mas a tragédia dos sacerdotes hebreus é que a Deus não aprouve remover a deles, e o julgamento dos seus lábios não passava de humano, falível; um que vê adúltera e esquece o adúltero requerido para a cópula. O fariseu pode julgar. Mas não deve, porque não tem a mente de Cristo:
'Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se julgam espiritualmente. Mas o que é espiritual julga bem tudo, enquanto ele por ninguém é julgado. Pois, quem jamais conheceu a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo' (I Coríntios 2:14-16).
O fariseu irregenerado julga para manter o seu sacerdócio. O cristão nascido do Espírito julga por amor. E quando o faz a um irmão regenerado, este retribui amorosamente:
'Não repreendas ao escarnecedor, para que não te odeie; repreende ao sábio, e amar-te-á. Instrui ao sábio, e ele se fará mais, sábio; ensina ao justo, e ele crescerá em entendimento. O temor do Senhor é o princípio sabedoria; e o conhecimento do Santo é o entendimento' (Provérbios 9:8-10).
Já o cristão regenerado em si só não pode julgar, mas deve. O poder para o julgamento reside na autoridade da Palavra e não nele, mas o dever nele reside pois na Palavra é instruído a julgar, ao ser nela julgado:
'Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça' (II Timóteo 3:16).
Nuno Fonseca |
posted by @ 8:04 da tarde |
|
|
Por visto |
É evidente que a interpelação e análise do estatuto da comunhão em que real e existencialmente me encontro, é de legítimo rigor. Nem todos chegámos ou partimos da santidade; a maioria de nós até, suponho, atravessam a provação nos estertores das suas máculas e espinhos na carne. Mas quando tal é um simulacro demoníaco, e não é feito para comungar e mutuamente nos sustermos na difícil caminhada da conversão; quando tal é o tribunal ilegítimo duma peste emocional que se opõe à acção do espírito santo em nós e connosco; quando tal é exercício de desamor e anulação do outro no ressentimento maior e no surdo orgulho; então, só uma atitude nos pode manter em Deus: como Cristo no julgamento das trevas, manteremos os lábios cerrados, abrindo-os de quando em vez numa lacónica ironia.
Vítor Mácula |
posted by @ 12:53 da tarde |
|
|
Da igreja neste sujeito, e deste sujeito na igreja |
1. Se atentarmos à história da heresia, e respectivos concílios que se confrontam nela e com ela, reparamos que um dos polos de confusão é o mistério do deus-homem, e a tentativa de domesticar esse mistério dando primazia a um dos polos, humano ou divino. O pelagianismo escapa à primeira vista a esta tensão, mas numa problematização mais aprofundada, notamos que o facto de a natureza humana não poder salvar-se (comungar com o divino) a partir de si própria, se conecta intrinsecamente com a questão de Jesus ser também inteiramente humano. Esta apreensão histórica dá um sentido à etimologia da palavra (escolha) pois tem que ver precisamente com a escolha de um dos polos da tensão cristã. Continuando a atentar, vemos no conteúdo herético, um dos polos da conversão contínua a que somos chamados. Se debitarmos os paradoxos da fé (inteiramente humano e inteiramente divino, para o caso) sem balançarmos dum para o outro, não é na carne da vida que estaremos a viver o cristianismo, mas tão só no discurso e na representação, o que não faz muito sentido pois o cristianismo pretende deflagrar estes para lançar-nos no transcendente e trazê-Lo à vida. É a tensão entre ambos que permite e instiga o movimento da conversão. Ou então estaremos a usar os mistérios da fé para os nossos interesses de grupo e suas ideológicas identidades, ao arrepio total do comportamento, precisamente, de Jesus.
2. O anti-cristianismo duma heresia não reside tanto no conteúdo humano ou divino focado, não se funda no seu estertor inicial e espanto perante a tensão máxima de ambos os polos, mas na pretensão de resolução da tensão numa adaptação a um ponto de vista ainda por transfigurar; isto é, na escolha de um dos polos em detrimento do outro.
3. Jesus não é humano, pois nada humano é criador do universo ; Jesus não é Deus, pois Deus não nasceu numa noite qualquer num qualquer estábulo. É a tensão entre ambos que permite e instiga o movimento da conversão. Mistério que move. A fixação do mistério em conceitos, numa tentativa de entendimento e inteligibilidade dos mesmos, e que constitui um dos movimentos da procura e do anseio, não pode anular a tensão, visto que é nesta que está a dinâmica.É a igualdade irreflectida dos termos « Jesus » e « Deus » que obriga a fixação (só Deus ou só humano) ao contrário do que dizem os nosso preconceitos mais apressados. É evidente que nós gaguejamos o mistério da relação de Jesus com Deus, em infinita diferença à nossa : consubstancialidade, da mesma natureza que, absoluta transparência e por aí afora confusamente. Jesus é da mesma substância divina como eu sou da mesma substância do universo criado. Em Jesus habita a presença total do divino, tenha ou não consciência disso em todos os momentos da sua vida, tal como eu sou totalmente habitado pela minha natureza, mesmo quando não penso nela ou a/me vou descobrindo e encobrindo continuadamente. Jesus vê o divino com a mesma transparência com que eu vejo o meu habitat natural. Mas tudo isto, obscuro está - é um mistério.Chama-nos a mergulhar nele com confiança e terror, amor e segredo, e darmo-nos no mundo a partir dessa estilhaçante luz.
4. Podemos também reparar na questão da canonicidade dos textos neotestamentários. Lendo os apócrifos na sua radical diversidade entre si, não sou capaz de deixar de notar que estão no entanto imbuídos duma tentativa (natural, e que todos fazemos à luz da nossa personalidade, época e lugar) de tornar o paradoxo do humano-divino de Jesus categorizável, tal como aliás ocorre também nos evangelhos canónicos, mas dada a sua maior proximidade com o facto Jesus (tanto cronológica como eclesial ou apostólica) esse elemento é tratado de outro modo, isto é, mais conivente ao mistério. Isso não significa que os apócrifos sejam livros cristologicamente errados em todos os seus enunciados, a não ser no sentido que todos nos vamos errando no trajecto. Significa que correspondem à tradição, à longa caminhada de Deus no interior de cada um de nós, e que os textos neotestamentários têm uma proximidade que mais nenhum outro texto nem memória têm.
5. A acção da razão não deverá ser anulada em nenhum dos seus momentos; mas também não deverá ser a última instância. O primeiro momento é a produção dum conceito que corresponda à ocorrência, e que desta se distingue, tal como o conceito de cão se distingue do Bobby, ou o conceito de amor se distingue dum namoro. Ou seja, há determinações genéricas que se podem aduzir nas classificações. O segundo é a aferição das relações entre essas determinações gerais, específicas e particulares adentro do conceito– o momento analítico. Por exemplo, é consistente ser cão, ladrar, ter o pêlo castanho. O terceiro será a aferição das relações de tal conceito com outros, assim como com a realidade e com a vida. Pode também haver um quarto momento, extensão deste, que é o momento sintético, isto é, ter uma representação do todo do mundo e da vida onde evidentemente se insere tal e tal ocorrência. Este é um momento muito perigoso, porque dada uma peculiar tendência nossa, podem aqui inverter-se os valores de realidade, e subsumir a vida num dado sistema representativo que a sufoque,ou melhor, que se sufoque na fixação e absolutização de si próprio. É o que acontece geralmente com as ideologias. O que se passa nos mistérios é que há uma tensão entre determinações (para o caso, eterno e temporal, criador e criatura, infinito e finito, universal e singular) ou conceitos (para o caso, divino e humano). Não significa que se deva renegar a razão, antes pelo contrário, ela deve manter-se e ser tomada pela interpelação (um pouco como se passa na experiência amorosa, assim como nalgumas experiências estéticas ou intuições científicas; um pouco como se deveria passar com tudo na vida).
6. A ideia de revelação de Deus, mesmo no seu aspecto mais alargado e indefinido, é algo que muito me interpela e forma, no sentido em que há « algo que se mostra ». Eu pensinto e vivo o « deus mostrando-se » de inúmeras e infindas maneiras conscientes e inconscientes na minha vida. Desde os encontros e acontecimentos desta no sentido geral, passando por frases ocasionalmente oferecidas numa parede qualquer à luz do fim de tarde, numa alegria melancólica dum beco qualquer, assim como nas actividades humanas da ciência às artes e literaturas; e a gota de água que pinga no luar de outono, do beiral do telhado para o soalho do alpendre, lenta e brilhante; a natureza, claro e biblicamente também (as obras reflectem o obreiro); a oração pessoal, tanto; e o amor. E evidentemente, a revelação judaico-cristã e sua influência e irradiação, dum modo muito especial e específico.
7. Eu creio que em Jesus Cristo se dá a maximização ou completude da comunhão deus-humano, e que através Dele esta me é doada. Que o Deus revelado em Cristo é a verdade que corresponde ao que funda e finaliza o sentido de todas as coisas visíveis e invisíveis é em mim e para mim uma intensa petição de fé. Na humanidade de Jesus mostra-se o espelho humano totalmente polido, reflectindo transparentemente aquilo de que é imagem e semelhança; e havendo unicidade de verdade, o aspecto antropológico de tal é passível de comunicação e partilha com não-cristãos. Isto é, as coisas todas – da razão aos fenómenos e disposições – reflectem Deus de um modo ou outro, com mais ou menos opacidade. Não vejo falsidade total em nada, e também não nas outras religiões e irreligiões. Nesse sentido, não considero que tudo o que esteja fora da revelação judaico-cristã esteja separado de Deus por uma total opacidade; no entanto, tudo (incluindo a Igreja e eu próprio) está de algum modo em pecado, isto é, desviado do seu sentido, não reflectindo Deus em total transparência, e nesse desvio originário, não se mostrando na sua verdade, fazendo de nós cegos, surdos e mudos; mas não totalmente. Sobram-nos, digamos assim, murmúrios, figuras na névoa, sombras e fogachos de luz. Quem se conhece e conhece as coisas, a vida ? Pois. Mas é por a existência ser um entre isto e aquilo, entre o apelo e a chegada, entre o reconhecimento e a estranheza, o amor e o desaire, o conhecimento e a ignorância, que se trata duma peregrinação.
8. Nego que a Igreja militante, o papa, os textos bíblicos canónicos e os catecismos, ou o que fôr de cristão, sejam absolutos; tal constituiria, a meu ver, uma idolatria (substituir Deus por um seu reflexo, o que na tradição dos Padres da Igreja se diz «confundir a criatura com o criador», o acesso ou caminho com o ponto de chegada). A Igreja militante é temporal e relativa, e no limite, a própria incarnação é temporal e relativa (tem o seu sentido último na transcendência divina).
9. Confiantes na sua insegurança, os cavalos relincham ao aproximar-se da fogueira; sem a Igreja, os textos bíblicos, a tradição e a comunhão, a minha fé não passa dum grito no deserto.
10. A ideia de pecado, que tem o significado etimológico de « falhar o alvo », não implica necessariamente um des-ligamento absoluto, mas um desvio, um equívoco existencial, uma cegueira. Todos nós estaremos desadequados de nós próprios, e os próprios anseios movem-se numa dinâmica que não os esclarece nem realiza. Passa-se no entanto que Deus, executando a ponte entre Ele e nós, mantém a exigência amorosa de que nos disponibilizemos ao acolhimento da divindade. E todos nós teremos resistências ao « Cristo viver em mim »; é esse o sentido renovado dos ritos religiosos privados e comuniais, dos exercícios e contrições, das comunhões e retiros. E também, duma tomada de consciência, decisão e acção perante a revelação; dessa situação existencial do abismo transposto pelo próprio Deus, em pura gratuidade.
11. Pretender deter a verdade final porque se foi tocado na carne pelo deus humanizado e humanizante, pode ter efeitos colaterais tão perigosos e confusos quantos os vasos pagãos: uma idolatria duma representação crística pontual e fechada e imobilizada, e uma pretensão a poder julgar os outros, a vida e o espírito, do ponto de vista de Deus, substituindo-se farisaicamente à acção real Deste nos outros, na vida e em nós.
12. Porque há uma rosa: «Eu e o Pai somos um», e qualquer um que ande – tropeça perante tal afirmação. Que Deus nos pegue pelo colo nesse movimento (graça infusa) é outro momento do tropeço, ou outra questão, quero dizer – é posterior, em termos da dinâmica de conversão. Isto leva-nos a notar também, que a heresia e a distância apócrifa têm uma certa correspondência nos enunciados apostólicos sucessórios, que tal como Pedro antes do galo cantar, ou enfrentado por Paulo em Antioquia – se retiram tantas vezes do que lhes dá voz e palavra. Ó Deus do céu e da terra, do mar e dos infernos e dos soçobrados ventos e marés, eis os que na escuridão de si por Ti clamam, os que ainda vamos a caminho do que já chegou. Até porque ninguém que não divino – pode estar mais perto ou mais longe do inquantificável. Jesus é um inagarrável que nos arrebata, as mãos vazias e dolorosas erguidas à noite, no dia da invisibilidade do mundo, na sua completa opacidade. Convém não esquecer o esquecimento. Convém não esquecer, que a Deus – ninguém detém.
Lembra-te. Como reconheceu Madalena o jardineiro? Vítor Mácula
|
posted by @ 12:43 da tarde |
|
|
Nueva Esperanza - a razão de sucesso desta comunidade |
"'Na Nicarágua governavam os sandinistas e estes camponeses aprenderam com eles a trabalhar em sistema cooperativo (...). Desde então nunca quiseram redistribuir a terra em sistema de propriedade privada (...) Deve-se à opção religiosa da comunidade. decidiram manter-se católicos, continuaram unidos. Muitas outras comunidades abraçaram as seitas evangélicas e desfizeram-se (...)' Em 1969 foi publicado um estudo encomendado por Nixon à Fundação Rockfeller, sobre, entre outras coisas, a acção que a Igreja estava a desempenhar na América Latina. O relatório Rockfeller foi peremptório: 'A Igreja Católica deixou de ser um aliado de confiança para os Estados Unidos'. (...) Washington reagiu e financiou com milhões de dólares a penetração de seitas evangélicas apocalípticas na América Latina, entre eles os mórmones, as Testemunhas de Jeová, o tele-evangelista Pat Robertson e a seita do reverendo Moon(...) Algumas centenas de padres e catequistas católicos foram assassinados, ao longo dos anos oitenta, para facilitar esta penetração." (Artigo de Gonçalo Cadilhe in revista do Expresso deste fim-de-semana)
timshel |
posted by @ 8:46 da manhã |
|
sexta-feira, outubro 10, 2008 |
Catequese |
Ai que saudade Senhora De estar onde Tu estiveste. Ajoelhar na Capela E rezar como quiseste, Acendendo a minha vela. Nossa Senhora de Fátima Eu Te quero como filha, Como Mãe me tens tratado. Orienta a minha trilha E afasta-me do pecado. Saudade de quem venera E se entregando, confia Que sempre está protegida, Quer de noite quer de dia, Ao longo de toda a vida. Maria Ilona Bastos Batistacbs
|
posted by @ 10:37 da tarde |
|
quinta-feira, outubro 09, 2008 |
Introdução à escatologia. Pelo Rev. Peter Mullen. |
'Mas o que para mim era lucro passei a considerá-lo como perda por amor de Cristo; sim, na verdade, tenho também como perda todas as coisas pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como refugo [gr. 'skubalon' - fezes de cão], para que possa ganhar a Cristo' (Filipenses 3:7-8)
Foi ontem noticiado que o reverendo anglicano Peter Mullen rogou recentemente o perdão da comunhão de Westminster pelos seguintes comentários, retirados do seu blogue:
'Obriguem os homossexuais a tatuarem as costas com o dístico A sodomia pode prejudicar gravemente a sua saúde (...). Mais ainda, a obscenidade das paradas de orgulho gay devia ser ilegalizada pela sua corrupção passiva, comparável à dos fumadores passivos'.
O clérigo também se insurge poeticamente contra o casamento entre dois párocos da Igreja de Inglaterra nos seguintes versos, que manterei por traduzir, para apreciação pura do seu lirismo:
'The Bishop of London is in a high huff. Because Dr Dudley has married a puff; And not just one puff - he's married another: Two priests, two puffs and either to other.'
Peço primeiramente calma, pois já fui chamado homofóbico e antifemininista antes: não subscrevo às declarações do Rev. Mullen. Reconheço, sim, a verdade bíblica de que os sodomitas e efeminados que não se arrependam do seu pecado jamais herdarão o Reino (I Coríntios 6:9), e qualquer leitura minimante honesta da Palavra concordará comigo. Contudo, não me parece de tom sério a difamação moralista e farisaica do homossexual. Isso é mais retórica dos políticos de direita, no meio secular. Pois óbvio é que ninguém é convertido pela moral, mas pelo Evangelho, que regenera o homem perdido - desejando ele mais as coisas das carne que a obediência a Deus - e chama ao arrependimento das suas faltas e à fé purificante em Jesus Cristo, que só o nascido do Espírito pode mostrar, por obra do Senhor. Só então moralizem o pobre coitado.
Contudo - e apesar de não concordar com a afirmação do pároco inglês - reconheço a legitimidade do uso da linguagem escatológica: ou seja, do registo de linguagem cru e por vezes asqueroso, que até encontramos não tão raramente na Escritura. Esta, porém, é utilizada em tom profético, e em situações específicas, sobre duas ou três temáticas em particular: não tão somente a desobediência à Lei de Deus, mas a hipocrisia dos que intentam comprar a salvação do Senhor por obras humanas, desrespeitando a Graça - como o versículo acima, em que Paulo compara os seus feitos enquanto clérigo a uma pilha de cocó canino. Escutemos também Isaías:
'Pois todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças como trapos de imundícia [he. 'êd' - fraldas menstruais]; e todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniquidades, como o vento, nos arrebatam. E não há quem invoque o teu nome' (Isaías 64:6-7a).
Numa instância particularmente gráfica, o Senhor acusa Israel dum historial de promiscuidade espiritual, desde a Assíria ao Egipto, em que os hebreus se dobraram perante ídolos e louças divinas, como que em libertinagem sexual:
'Todavia ela multiplicou as suas prostituições, lembrando-se dos dias da sua mocidade, em que se prostituira na terra do Egito, apaixonando-se dos seus amantes, cujas pudendas eram como as de jumentos, e cujo fluxo era como o de cavalos. Assim desejaste a luxúria da tua mocidade, quando os egípcios apalpavam os teus seios, para violentar os peitos da tua mocidade' (Ezequiel 23:19-21).
Que dizer à vista disto? A Escritura refere a idolatria, a justificação por obras, o adultério, a sodomia, etc., como nojices e algo nauseabundo ao Senhor. E muitas vezes reparo no efeito negativo que a omissão e eufemização do pecado mostra: mais pecado. Vi demasiadas vezes irmãos na fé recaírem também pelo lapsus linguae do pastor em não articular a realidade tão fecal e visceral que é a rebelião contra Deus; isto é, não permitirem que o cocó seja cocó, cheire mal, e nos chame ao grego. Koiné.
Nuno Fonseca |
posted by @ 2:51 da tarde |
|
segunda-feira, outubro 06, 2008 |
Agrapha |
E Jesus disse: toda a busca, no seu anseio, traz a semente da sua recompensa.
Vítor Mácula |
posted by @ 11:43 da manhã |
|
|
Um blogue de protestantes e católicos. |
|
Já escrito |
|
Arquivos |
|
Links |
|
|