domingo, outubro 12, 2008
Da igreja neste sujeito, e deste sujeito na igreja
1. Se atentarmos à história da heresia, e respectivos concílios que se confrontam nela e com ela, reparamos que um dos polos de confusão é o mistério do deus-homem, e a tentativa de domesticar esse mistério dando primazia a um dos polos, humano ou divino. O pelagianismo escapa à primeira vista a esta tensão, mas numa problematização mais aprofundada, notamos que o facto de a natureza humana não poder salvar-se (comungar com o divino) a partir de si própria, se conecta intrinsecamente com a questão de Jesus ser também inteiramente humano. Esta apreensão histórica dá um sentido à etimologia da palavra (escolha) pois tem que ver precisamente com a escolha de um dos polos da tensão cristã.
Continuando a atentar, vemos no conteúdo herético, um dos polos da conversão contínua a que somos chamados. Se debitarmos os paradoxos da fé (inteiramente humano e inteiramente divino, para o caso) sem balançarmos dum para o outro, não é na carne da vida que estaremos a viver o cristianismo, mas tão só no discurso e na representação, o que não faz muito sentido pois o cristianismo pretende deflagrar estes para lançar-nos no transcendente e trazê-Lo à vida. É a tensão entre ambos que permite e instiga o movimento da conversão. Ou então estaremos a usar os mistérios da fé para os nossos interesses de grupo e suas ideológicas identidades, ao arrepio total do comportamento, precisamente, de Jesus.

2. O anti-cristianismo duma heresia não reside tanto no conteúdo humano ou divino focado, não se funda no seu estertor inicial e espanto perante a tensão máxima de ambos os polos, mas na pretensão de resolução da tensão numa adaptação a um ponto de vista ainda por transfigurar; isto é, na escolha de um dos polos em detrimento do outro.

3. Jesus não é humano, pois nada humano é criador do universo ; Jesus não é Deus, pois Deus não nasceu numa noite qualquer num qualquer estábulo.
É a tensão entre ambos que permite e instiga o movimento da conversão.
Mistério que move.
A fixação do mistério em conceitos, numa tentativa de entendimento e inteligibilidade dos mesmos, e que constitui um dos movimentos da procura e do anseio, não pode anular a tensão, visto que é nesta que está a dinâmica.É a igualdade irreflectida dos termos « Jesus » e « Deus » que obriga a fixação (só Deus ou só humano) ao contrário do que dizem os nosso preconceitos mais apressados.
É evidente que nós gaguejamos o mistério da relação de Jesus com Deus, em infinita diferença à nossa : consubstancialidade, da mesma natureza que, absoluta transparência e por aí afora confusamente.
Jesus é da mesma substância divina como eu sou da mesma substância do universo criado.
Em Jesus habita a presença total do divino, tenha ou não consciência disso em todos os momentos da sua vida, tal como eu sou totalmente habitado pela minha natureza, mesmo quando não penso nela ou a/me vou descobrindo e encobrindo continuadamente.
Jesus vê o divino com a mesma transparência com que eu vejo o meu habitat natural.
Mas tudo isto, obscuro está - é um mistério.Chama-nos a mergulhar nele com confiança e terror, amor e segredo, e darmo-nos no mundo a partir dessa estilhaçante luz.

4. Podemos também reparar na questão da canonicidade dos textos neotestamentários. Lendo os apócrifos na sua radical diversidade entre si, não sou capaz de deixar de notar que estão no entanto imbuídos duma tentativa (natural, e que todos fazemos à luz da nossa personalidade, época e lugar) de tornar o paradoxo do humano-divino de Jesus categorizável, tal como aliás ocorre também nos evangelhos canónicos, mas dada a sua maior proximidade com o facto Jesus (tanto cronológica como eclesial ou apostólica) esse elemento é tratado de outro modo, isto é, mais conivente ao mistério. Isso não significa que os apócrifos sejam livros cristologicamente errados em todos os seus enunciados, a não ser no sentido que todos nos vamos errando no trajecto. Significa que correspondem à tradição, à longa caminhada de Deus no interior de cada um de nós, e que os textos neotestamentários têm uma proximidade que mais nenhum outro texto nem memória têm.

5. A acção da razão não deverá ser anulada em nenhum dos seus momentos; mas também não deverá ser a última instância.
O primeiro momento é a produção dum conceito que corresponda à ocorrência, e que desta se distingue, tal como o conceito de cão se distingue do Bobby, ou o conceito de amor se distingue dum namoro. Ou seja, há determinações genéricas que se podem aduzir nas classificações.
O segundo é a aferição das relações entre essas determinações gerais, específicas e particulares adentro do conceito– o momento analítico. Por exemplo, é consistente ser cão, ladrar, ter o pêlo castanho.
O terceiro será a aferição das relações de tal conceito com outros, assim como com a realidade e com a vida.
Pode também haver um quarto momento, extensão deste, que é o momento sintético, isto é, ter uma representação do todo do mundo e da vida onde evidentemente se insere tal e tal ocorrência. Este é um momento muito perigoso, porque dada uma peculiar tendência nossa, podem aqui inverter-se os valores de realidade, e subsumir a vida num dado sistema representativo que a sufoque,ou melhor, que se sufoque na fixação e absolutização de si próprio. É o que acontece geralmente com as ideologias.
O que se passa nos mistérios é que há uma tensão entre determinações (para o caso, eterno e temporal, criador e criatura, infinito e finito, universal e singular) ou conceitos (para o caso, divino e humano). Não significa que se deva renegar a razão, antes pelo contrário, ela deve manter-se e ser tomada pela interpelação (um pouco como se passa na experiência amorosa, assim como nalgumas experiências estéticas ou intuições científicas; um pouco como se deveria passar com tudo na vida).

6. A ideia de revelação de Deus, mesmo no seu aspecto mais alargado e indefinido, é algo que muito me interpela e forma, no sentido em que há « algo que se mostra ». Eu pensinto e vivo o « deus mostrando-se » de inúmeras e infindas maneiras conscientes e inconscientes na minha vida. Desde os encontros e acontecimentos desta no sentido geral, passando por frases ocasionalmente oferecidas numa parede qualquer à luz do fim de tarde, numa alegria melancólica dum beco qualquer, assim como nas actividades humanas da ciência às artes e literaturas; e a gota de água que pinga no luar de outono, do beiral do telhado para o soalho do alpendre, lenta e brilhante; a natureza, claro e biblicamente também (as obras reflectem o obreiro); a oração pessoal, tanto; e o amor.
E evidentemente, a revelação judaico-cristã e sua influência e irradiação, dum modo muito especial e específico.

7. Eu creio que em Jesus Cristo se dá a maximização ou completude da comunhão deus-humano, e que através Dele esta me é doada. Que o Deus revelado em Cristo é a verdade que corresponde ao que funda e finaliza o sentido de todas as coisas visíveis e invisíveis é em mim e para mim uma intensa petição de fé. Na humanidade de Jesus mostra-se o espelho humano totalmente polido, reflectindo transparentemente aquilo de que é imagem e semelhança; e havendo unicidade de verdade, o aspecto antropológico de tal é passível de comunicação e partilha com não-cristãos. Isto é, as coisas todas – da razão aos fenómenos e disposições – reflectem Deus de um modo ou outro, com mais ou menos opacidade. Não vejo falsidade total em nada, e também não nas outras religiões e irreligiões. Nesse sentido, não considero que tudo o que esteja fora da revelação judaico-cristã esteja separado de Deus por uma total opacidade; no entanto, tudo (incluindo a Igreja e eu próprio) está de algum modo em pecado, isto é, desviado do seu sentido, não reflectindo Deus em total transparência, e nesse desvio originário, não se mostrando na sua verdade, fazendo de nós cegos, surdos e mudos; mas não totalmente. Sobram-nos, digamos assim, murmúrios, figuras na névoa, sombras e fogachos de luz. Quem se conhece e conhece as coisas, a vida ? Pois. Mas é por a existência ser um entre isto e aquilo, entre o apelo e a chegada, entre o reconhecimento e a estranheza, o amor e o desaire, o conhecimento e a ignorância, que se trata duma peregrinação.

8. Nego que a Igreja militante, o papa, os textos bíblicos canónicos e os catecismos, ou o que fôr de cristão, sejam absolutos; tal constituiria, a meu ver, uma idolatria (substituir Deus por um seu reflexo, o que na tradição dos Padres da Igreja se diz «confundir a criatura com o criador», o acesso ou caminho com o ponto de chegada). A Igreja militante é temporal e relativa, e no limite, a própria incarnação é temporal e relativa (tem o seu sentido último na transcendência divina).

9. Confiantes na sua insegurança, os cavalos relincham ao aproximar-se da fogueira; sem a Igreja, os textos bíblicos, a tradição e a comunhão, a minha fé não passa dum grito no deserto.

10. A ideia de pecado, que tem o significado etimológico de « falhar o alvo », não implica necessariamente um des-ligamento absoluto, mas um desvio, um equívoco existencial, uma cegueira. Todos nós estaremos desadequados de nós próprios, e os próprios anseios movem-se numa dinâmica que não os esclarece nem realiza. Passa-se no entanto que Deus, executando a ponte entre Ele e nós, mantém a exigência amorosa de que nos disponibilizemos ao acolhimento da divindade. E todos nós teremos resistências ao « Cristo viver em mim »; é esse o sentido renovado dos ritos religiosos privados e comuniais, dos exercícios e contrições, das comunhões e retiros. E também, duma tomada de consciência, decisão e acção perante a revelação; dessa situação existencial do abismo transposto pelo próprio Deus, em pura gratuidade.

11. Pretender deter a verdade final porque se foi tocado na carne pelo deus humanizado e humanizante, pode ter efeitos colaterais tão perigosos e confusos quantos os vasos pagãos: uma idolatria duma representação crística pontual e fechada e imobilizada, e uma pretensão a poder julgar os outros, a vida e o espírito, do ponto de vista de Deus, substituindo-se farisaicamente à acção real Deste nos outros, na vida e em nós.

12. Porque há uma rosa: «Eu e o Pai somos um», e qualquer um que ande – tropeça perante tal afirmação. Que Deus nos pegue pelo colo nesse movimento (graça infusa) é outro momento do tropeço, ou outra questão, quero dizer – é posterior, em termos da dinâmica de conversão.
Isto leva-nos a notar também, que a heresia e a distância apócrifa têm uma certa correspondência nos enunciados apostólicos sucessórios, que tal como Pedro antes do galo cantar, ou enfrentado por Paulo em Antioquia – se retiram tantas vezes do que lhes dá voz e palavra.
Ó Deus do céu e da terra, do mar e dos infernos e dos soçobrados ventos e marés, eis os que na escuridão de si por Ti clamam, os que ainda vamos a caminho do que já chegou.
Até porque ninguém que não divino – pode estar mais perto ou mais longe do inquantificável.
Jesus é um inagarrável que nos arrebata, as mãos vazias e dolorosas erguidas à noite, no dia da invisibilidade do mundo, na sua completa opacidade.
Convém não esquecer o esquecimento. Convém não esquecer, que a Deus – ninguém detém.
Lembra-te. Como reconheceu Madalena o jardineiro?

Vítor Mácula
posted by @ 12:43 da tarde  
5 Comments:
  • At 12 de outubro de 2008 às 18:26, Blogger zazie said…

    Que grande texto, Vítor

     
  • At 12 de outubro de 2008 às 19:49, Blogger maria said…

    Eh lá, mano. Tens aqui um grande texto. e o seguinte sendo mais 2pequeno" ;) grande é também.

    Digerir isto não vai ser fácil, nem devo conseguir...mas prometo dar-lhes bastante atenção.

     
  • At 13 de outubro de 2008 às 13:16, Blogger Pedro Leal said…

    Vítor

    7. O que o Evangelho nos mostra não é um Jesus Cristo mais completo ou melhor como revelação. A questão de Jesus tem a ver com suficiência. Os homens e mulheres, como pecadores, estão condenados. Só Jesus, pela Sua obra, é suficiente para os salvar. E é esta suficiência para um problema tão grave, a vida ou a morte eterna, que torna Jesus singular. Único.

    8. O “absoluto” aqui não é tudo. Obviamente que Deus é muito mais que a Bíblia. Mas a Bíblia contém o que Deus revelou, aquilo que Ele quer que nós saibamos.

    11. O pecado é, como tu dizes, “errar o alvo”. E o cristão, porque ama a Deus, não pode relativizar ou tratar com leviandade o errar o alvo.

     
  • At 13 de outubro de 2008 às 14:46, Blogger Vítor Mácula said…

    olá, senhoras :)

     
  • At 13 de outubro de 2008 às 14:46, Blogger Vítor Mácula said…

    Olá, Pedro

    Não tenho bem a certeza de ter compreendido as objecções, porque diria até que não afirmo nada de contrário; mas vamos tentar ver possíveis divergências.

    7. Só Deus ele próprio é acesso da comunhão com o divino; pela incarnação jesuânica, o próprio divino integra em si o humano, permitindo-nos assim a impossível comunhão. Talvez aqui a divergência seja que eu, de jure et de facto, não transitar para uma exclusividade nominal; isto é, não sei se Deus se doa humanamente doutros modos. Talvez um dia venha a saber, sabe-se lá ;)

    8. Talvez a divergência aqui seja uma correspondência da anterior, mas aqui mais marcada: como podes depreender do meu texto, de modo nenhum penso que a “palavra divina” se exprima exclusivamente nos textos bíblicos; considero no entanto estes suficientes, sim, se forem instigação para a escuta vital e comunial, interior e exterior: Deus exprime-se na criação inteira.

    9. Não percebo. Não tenho leviandade nenhuma com o pecado; penso é que temos de mutuamente acompanhar-nos na misericórdia, mas isso… Talvez aqui as divergências sejam na identificação do que é ou não pecado, não?

    abraço

     
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