A fenomenologia da carne reconduziu-nos da nossa abertura ao mundo, pelas prestações transcendentais dos nossos diferentes sentidos, à auto-impressionalidade destas, na carne da vida. É só em virtude desta auto-doação patética que os nossos sentidos pertencem a uma carne e que tudo o que é dado neles, o conteúdo sensível da nossa experiência que reportamos às coisas enquanto suas qualidades próprias, se verifica ser originariamente e em si composto de “impressões”. Ora esta auto-doação patética dos nossos sentidos na vida tem uma outra significação decisiva: a de fazer de cada um deles um poder. Este não se limita à produção, em nós, de um contínuo de impressões originárias ek-staticamente, referidas ás coisas, mas é, em primeiro lugar, o poder de se exercer. Eu posso abrir os olhos para o espectáculo do universo, prestar atenção ao barulho distante, passar a mão por uma superfície lisa ou por uma forma torneada – “eu posso” fazer tudo isto e muitas outras coisas. Mas todos estes poderes diferenciados e específicos, com que a nossa vida quotidiana exprime o exercício imediato e contínuo, trazem neles, a titulo de pressuposto insuperável, um poder mais antigo, o de pôr em exercício, de passar a acto e de, constantemente, poder fazê-lo. Assim é preciso reconhecer em cada um deles, implicado por ele, ainda que indiferente à sua especificidade, o reino deste “eu posso” original, sem o qual nenhum poder em geral, nenhum dos poderes do nosso corpo Seria possível.
Michel Henry, Encarnação uma filosofia da carne, Círculo dos leitores 2001 (p.193)
cbs |