Segundo a fenomenologia da vida há dois modos fundamentais e irredutíveis de aparecer: o do mundo e o da vida. Então, se tratarmos a questão do corpo e da carne numa perspectiva fenomenológica, dois caminhos - que mais não são do que dois modos de aparecer - se abrem à investigação. O aparecer do corpo no mundo confunde-se com a experiencia ordinária desse corpo, a ponto de se identificar com ela e de a definir. É esta experiencia mundana do corpo que expressa o saber tradicional da humanidade. Aos olhos do que se chama o "senso comum", que não é senão uma forma de nomear a representação habitual que os homens fazem de si e do que os rodeia, o corpo é um objecto do mundo mais ou menos semelhante aos outros objectos, acessível no mundo, como eles, porque no mundo se mostra. Essa experiencia ordinária do corpo pode parecer vaga, sem valor, se a referirmos às exigências de um saber verdadeiro. Mas na medida em que um tal corpo se mostra no aparecer do mundo, recebe deste uma determinação fenomenológica e ontológica tão radical como rigorosa. A banalidade das propriedades que manifesta não consegue esconder o seu carácter determinante. Se enquanto modos unificantes (sínteses) de “dar-a-ver”, as intuições puras do espaço e do tempo, são modos de aparecer do mundo inerentes à sua estrutura fenomenológica, então todos os corpos que lhe devem o “mostrar-se-nos” revestem essas determinações essenciais de serem corpos espaciais e temporais. E se, enquanto representações, as categorias do entendimento são elas próprias modos de apresentação – modos do “pôr-diante” – co-pertencentes à estrutura fenomenológica do mundo, então tudo o que está submetido a essas categorias se encontra ligado, segundo o jogo das correlações e regras que a prescrevem, nomeadamente a da causalidade.
Assim, o aparecer do mundo, determina a priori a estrutura fenomenológica do corpo mundano. Porém, nenhum corpo real foi de facto posto desse modo alguma vez. Porque a existência dos corpos que formam o conteúdo concreto do mundo, exige a intervenção da sensação. A tese de Kant não é senão uma ilustração, daquilo que reconhecemos como um traço geral e decisivo do aparecer do mundo: a sua indigência ontológica, a sua incapacidade para pôr por si mesmo o conteúdo que lhe permite aparecer, conferir-se existência, numa palavra “criar-se”. Essa indigência manifesta, a propósito do corpo, conduz-nos a uma constatação paradoxal: este corpo – o nosso como qualquer outro – que encontra, sem duvida, o seu lugar no mundo e, desde sempre, parece pertencer-lhe, não é o aparecer do mundo. Este corpo não pode, precisamente por isso, de si mesmo prestar contas, pondo assim gravemente em causa a primeira via fenomenológica - a do mundo - para lhe circunscrever a natureza e prosseguir a análise.
O corpo mundano considerado na sua existência concreta – o conjunto dos corpos que “povoam” o universo, o nossos assim como os corpos de outros homens, de animais ou ainda os corpos inertes das “coisas”, todos eles são corpos sensíveis, isto é, que se podem sentir. Têm cores, odores, sabores, são sonoros, se lhes tocarmos, apresentam múltiplas propriedades tácteis – suaves ao toque, lisos ou rugosos, fendidos, sólidos como uma pedra, moles como a lama, secos e húmidos, ou ainda fugidios como a água por entre os dedos. É pelo conjunto destas propriedades sensíveis que, desde sempre, os corpos do universo se definiram aos olhos dos homens – cada um destes corpos não sendo senão um certo agrupamento de qualidades sensíveis, que determinam inteiramente o nosso comportamento a seu respeito, fazendo deles objectos agradáveis ou perigosos, úteis ou não, postos ao nosso alcance ou escapando-se-lhe. Assim, o mundo não é só um conjunto ordenado, mas também uma totalidade prática. Só que, nenhuma das qualidades sensíveis, que constituem os objectos componentes do nosso ambiente, deriva do aparecer do mundo. O mundo de que agora estamos a falar, já não é o mundo reduzido ao seu aparecer, mas sim o mundo considerado no seu conteúdo concreto, o mundo dos objectos reais onde os homens vivem e agem, é o mundo sensível. O mundo que deve este conteúdo sensível à sensação – a vida. É assim que o reconhecimento do carácter sensível do mundo e dos seus objectos, reenvia a fenomenologia do mundo para uma fenomenologia da vida. Michel Henri por cbs Etiquetas: filosofia da carne, michel henry |
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