quinta-feira, julho 29, 2010 |
Damásio |
As frases da Bluesmile: “A consciência humana (a consciência de si, o Self, ou o sentimento de si, de que fala o Damásio), assim como todas as experiências humanas subjectivas - perceptivas, sensoriais e místicas - nada têm de imaterial ou metafísico. Estão subordinados às leis da Física (mais precisamente da biofisiologia e da neuroquímica do nosso sistema nervosos central)” obrigaram-me a ouvir António Damásio. Mas para compreender a sua investigação, um termo fundamental a definir é “imagem”. Diz o cientista: Quando utilizo o termo imagem, quero sempre significar imagem mental. Padrão mental é um sinónimo de imagem. Não utilizo a palavra imagem para me referir ao padrão de actividades neurais que pode ser encontrado, através dos actuais métodos da neurociência, nos córtices sensoriais quando eles estão activos – por exemplo, nos córtices auditivos em correspondência com uma percepção auditiva; ou nos córtices visuais em correspondência com uma percepção visual. Quando me refiro ao aspecto neural deste processo uso termos como padrão neural ou mapa.
Portanto, os cientistas recorrem a um termo - que antes usaram os filósofos; Bergson, nos Dados Imediatos da Consciência, por exemplo – fica logo claro que existe uma diferença essencial entre o que são padrões neurais de células, que podemos observar objectivamente num cérebro, e as representações imagéticas a que apenas o próprio pode aceder, mas nunca um terceiro. Os padrões neurais têm um carácter material, enquanto os padrões mentais têm um carácter imaterial, isto é, são imagens mentais, de acesso directo e pessoal. E Damásio prossegue: As imagens provêm da actividade de cérebros e esses cérebros fazem parte de organismos vivos que interagem com ambientes físicos, biológicos e sociais. Deste modo, as imagens surgem de padrões neurais (ou de mapas neurais), formados em populações de células nervosas (ou neurónios), que constituem circuitos ou redes. Há, porém, um considerável mistério no que respeita à forma como as imagens emergem dos padrões neurais. O modo como um padrão neural se torna numa imagem é um problema que a neurobiologia ainda não resolveu. Muitos de nós, neurocientistas, somos guiados por um objectivo e por uma esperança: encontrar, finalmente uma explicação abrangente para como o tipo de padrão neural que conseguimos presentemente descrever com as técnicas da neurobiologia, desde as de nível molecular às do nível dos sistemas, se transforma em imagem multidimensional, integrada no espaço e no tempo, de que temos a experiencia neste preciso momento. Um dia virá em que conseguiremos explicar satisfatoriamente todos os passos que intervêm desde o padrão neural até à imagem, mas esse dia ainda não chegou. Quando digo que as imagens dependem de e surgem a partir de padrões neurais ou mapas neurais, em vez de dizer que as imagens são padrões ou mapas neurais, não estou a escorregar para um dualismo descuidado. Não estou a dizer que há um padrão neural por um lado e um cogito não material por outro. Estou simplesmente a dizer que ainda não conseguimos caracterizar todos os fenómenos biológicos que têm lugar entre: a) A nossa descrição actual dum padrão neural, a vários níveis biológicos b) A nossa experiencia da imagem que tem origem na actividade do mapa neural. Existe uma lacuna entre o nosso conhecimento dos fenómenos neurais, a nível molecular, celular e de sistema, por um lado e, por outro, a imagem mental cuja génese queremos compreender. Existe uma lacuna que deverá ser preenchida por fenómenos físicos ainda não identificados, mas presumivelmente identificáveis. A extensão da lacuna e a possibilidade do seu preenchimento no futuro constituem, é claro, assuntos para debate. Seja como for, quero deixar bem claro que considero os padrões neurais como os progenitores das entidades biológicas a que chamo imagens. (Mistérios e lacunas do conhecimento na produção de imagens in António Damásio, O sentimento de Si)
Portanto, é aqui reconhecida a lacuna entre aquilo que chamamos “padrão neural”, agrupamentos de células de carácter objectivo e material, e aquilo que designamos (cientistas e filósofos, repito) por “imagens mentais”, representações integradas no espaço-tempo da consciência, aquilo que se designa por consciência alargada (por diferenciação com a consciência nuclear). Nestes últimos objectos (imagens) continuamos no escuro, cheios de uma esperança que nos guia. A ciência “acredita” que chegará o dia em que esse caminho, entre a célula e a imagem, será explicado passo a passo. Por agora, fica a “esperança”!
Chamo a atenção para que, a par da esperança (induzida por sucessos) há uma repetição da atitude “dogmática” que atravessa a ciência, desde a física clássica até à física quântica. Digo dogmática, porque, se bem que fundamentada (não é cega nem surda, como o dogma religioso) ainda não recolheu a humildade suficiente (que os erros igualmente deviam induzir) para deixar de ter certezas em relação a explicações futuras – quando Damásio afirma por exemplo, que “as imagens dependem de e surgem a partir de padrões neurais” – que nem sequer serão do domínio do provável, mas mais do desconhecido. E já deviam ter aprendido que, como disse o Hamlet “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”. Mas também quero deixar explícito, que não me repugna, enquanto religioso e cristão, aceitar que o caminho será um dia explicado por fenómenos subordinados às leis da Física, da biofisiologia e da neuroquímica do nosso sistema nervosos central. Mesmo em termos religiosos, nós não existimos para acreditar, mas para conhecer, e uma coisa não impede a outra, como desde sempre fizeram os pensadores cristãos, mantendo a ligação entre fé e razão. Contudo a própria Ciência reconhece a existência de singularidades em que as leis da Física não se aplicam – buracos negros, por exemplo – e, ao menos provisoriamente, a imaterialidade das representações cerebrais, deixam as coisas em aberto. Só que o problema em termos existenciais não fica aqui. Mesmo que as ligações se façam e expliquem, mantém-se o abismo que separa desde sempre, a materialidade do universo, dessa outra realidade que consciencializamos no fundo de cada humano. A diferença subtil, mas clara entre “ver” as coisas – vídeo – e “sentir que vemos” – videor – do binómio cartesiano videre videor. A investigação neuro-biológica “vê” o onde (localização cerebral) e o como (descrição do processo). Faltará o último porquê, que é objecto, não da descrição neurológica, mas da investigação fenomenológica: o fenómeno enquanto puro aparecer no mundo. cbsEtiquetas: neurobiologia, razão e fé |
posted by @ 6:07 da tarde |
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14 Comments: |
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Caro cbs, a vontade que eu tenho de o convidar para um café para termos tempo de "discursar "fluidamente com algusm amigos sobre estas questões - sim comunicar em fluxos e redes - :)) - noite adentro.
Sobre o pulsar da vida mental (e do fluxo do pensamento, que alguns definem como o respirar da mente), é verdade que o modo como um padrão neural se torna numa imagem é um problema que a neurobiologia ainda não resolveu. Mas a palavra chave desta afirmação é a expressão AINDA.
A existência de lacunas no conhecimento científico sobre esse processo não significa que esse processo tenha qualquer coisa de imaterial ou transcendente. Pelo contrário - é precisamente na sua materialidade biofisiológica que se debruça o olhar perplexo do cientista.Nada há de imperativo metafísico no mistério ,pelo contrário, os mais abissais mistérios radicam precisamente na fisicalidade material ( ou energética)... De facto, quando se afirma que as imagens "produzidas pela mente " resultam de padrões neurais, trata-se , não de uma especulação pura ou filosófica ou de um acto de fé, mas de uma evidência científica. Sabemos hoje que essas "imagens mentais " NÂO podem surgir do nada, ou melhor, de mais nada, que não a actividade neuronal em rede.
Um exemplo paradigmático são, mais uma vez, as alucinações- eis um bom exemplo de como uma experiência "imaterial", imagética,subjectiva - se quiser uma "experiência subjectiva metafísica" - resulta de actividade cerebral específica. Por definição, as alucinações são experiências perceptivas, sensoriais sem objecto ou estímulo externo. Simplificando - quando escuto uma voz existe um estímulo externo que explica a percepção. Mas, e no caso das alucinações auditivas ? As pessoas com estas experiências subjectivas têm percepções tão realistas e intensas como as que "ouvem" materialmente estímulos externos. Só que as vozes "escutadas" não existem para mais ninguém. Então, o que se passa? Um experiência metafísica, imaterial? A certeza absoluta - porque subjectivamente experienciada mas impossível de provar materialmente - de uma experiência mística/transcendente? Foi assim até há poucas décadas. ( Até que se descobriu , que alguns fármacos eliminavam ou reduziam drasticamente as alucinações. Repito - fármacos. Nem rezas, nem benzeduras nem exorcismos. Substâncias químicas, que actuam a nível cerebral, em receptores específicos na fenda sináptica. Sabe-se hoje, com alguma consistência quais os sistemas de neurotransmissores implicados no processo. Mas, o mais interessante foi o recurso à imagiologia, nomeadamente através de PET ( tomografia por emissão de positrões) para visualizar o cérebro de pessoas que sofrem este tipo de alucinação. O PET demonstrou que durante as alucinações são activadas áreas cerebrais muito especificas (estruturas relacionadas com visão e audição). Ou seja a experiência metafísica "inexplicável" corresponde a padrões cerebrais observáveis e mensuráveis. E, curiosamente, quem estuda /trabalha sobre a mente e processo mentais, não faz essa distinção cartesiana entre diferença subtil, mas clara entre “ver” as coisas – vídeo – e “sentir que vemos". Se sentimos que vemos, é porque vemos -a experi~encia subjectivamente situada é sempre real, ainda que não corresponda +a realidade. Volto a isto porque há uma petite histoire precisamente sobre Descartes. Descartes teria um problema neurológico de base e sofreria de alucinações... o que explica a criação de um método para distinguir o real do não real...
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Parafrasenado Damásio, "A essência da consciência nuclear é o pensamento mesmo de si – o sentimento mesmo de si – como ser individual empenhado no processo de conhecer a sua própria existência e a existência dos outros" No fundo é o Cogito ergo sum. Mas uma coisa é absolutamente certa - sem um cérebro (humano)vivo e funcionalmente saudável, a consciência nuclear - o sentimento mesmo de si - desaparece.
Bastam aliás coisas bem singelas - como uma intoxicação alcoólica ou por drogas - a coisa sbem mais graves, como uma disfunções orgânicas de base, ou um traumatismo craniano, para que "o pensamento de si ou o sentimento de si" entre em colapso. Chamamos-lhe alterações do estado de consciência, que pode ir da obnubilação ao coma profundo.
Voltando ao cerne da questão - o sentimento-de-si, ou os "abismos" da complexidade da consciência humana nada têm de imaterial.
Um bom dia!
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Cara Blue Li a correr esta manhã, mas só agora tenho cabeça pra isto;) Terei muito gosto em tomar café, se quiser o meu email é cbs@museus.ul.pt e também sou fácil de encontrar no Jardim botânico da U.L. na rua da escola politécnica. Mas por favor, não me pense como um sábio que não sou, senão apanha uma grande desilusão. Pelo contrário, não passo de um jardineiro aprendiz e curioso.
É interessante ver como após o aparecimento da Biologia, com Claude Bernard e outros, a filosofia passou de uma expressão mecanicista, que é a de Descartes, para as expressões orgânicas dos fluxos e pulsares, como o famoso “élan vital” bergsoniano exemplifica; filosofia e ciência influenciam-se mutuamente. Vem isto a propósito da bio-expressão “pulsar da mente” relativa ao pensamento. Se não me engano, era o Lenine que dizia que o cérebro produz o pensamento, assim como o fígado segrega a bílis. Tenho as maiores dúvidas sobre esses paralelismos e sou muito céptico em relação ao optimismo da expressão “o modo como um padrão neural se torna numa imagem é um problema que a neurobiologia AINDA não resolveu”. Se me dão licença, espero para ver… Volto a bater no mesmo ponto, é a própria história da ciência que nos ensina que, de cada vez que estamos convencidos de que percebemos tudo, a Natureza tem reservada para nós uma surpresa radical que nos obriga a mudanças drásticas na maneira como víamos o mundo a funcionar. As próprias investigações do Damásio, trazendo a emoção de novo para o campo da inteligência, antes monopolizado por uma pretensa racionalidade pura, são disso exemplo (devo acrescentar que vejo a descoberta de Damásio como uma ajuda à filosofia vitalista de Bergson e uma refutação do racionalismo puro de Kant. Merecia um prémio Nobel)
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Voltando ao cherne da questão, deixas-me baralhado… mas seguindo por pontos: - Primeiro, parece-me importante reconhecer que não existe consciência sem um corpo, não existe pensar sem o apoio de um cérebro (mas isto é reconhecido pela fenomenologia). Por outras palavras, não acredito em fantasmas… nem a Igreja Católica, se fores ver. Aliás o fenómeno dito da “encarnação” tem que se lhe diga, entre outras coisas é sagração de uma carne e não de um fantasma. Resta depois explicar o que entendo por carne, mas isso é uma história fenomenológica para mais tarde. - Admito que a neurologia prática não faça a distinção subtil entre “ver” e “sentir que vemos”, mas Damásio fala nisso, e a fenomenologia não dispensa a distinção de três fenómenos reais, embora intimamente relacionados: a emoção, o sentimento dessa emoção e o conhecimento de que temos o sentimento dessa emoção. Porque não são relações comutativas, por exemplo, se sentir que vejo implica mesmo ver (mesmo que seja uma alucinação, as células acendem-se, não é?), já o perfeito funcionamento do aparelho visual, não implica eu sentir que vejo. - Dizeres de novo que “o sentimento-de-si ou os "abismos" da complexidade da consciência humana nada têm de imaterial”, é a parte que me lixa, desculpa o termo. Então se apenas sabemos que a determinados padrões neurais correspondem determinadas imagens mentais, se só sabemos que sem essa actividade neuronal em rede, não há pensamento (imagens mentais em termos técnicos), como podemos nós inferir que as imagens são materiais? Poderemos concluir que precisam do apoio material das células nervosas do cérebro mas não podemos inferir que são da mesma qualidade que a matéria. Penso que essa ideia de materialidade vem junta com a ideia de que é o cérebro que cria as imagens, um cérebro produtor de que falava o Lenine. Muito bem… mas há outras hipóteses, eu posso pensar que o cérebro é um transformador, e não um produtor, posso imaginar que a actividade cerebral advém de uma energia vital e que essa energia precisa de um apoio material, de um cérebro, para ser reduzida, como a corrente eléctrica, para se adequar ao meio físico, permitindo que racionalizemos por imagens, que possamos construir um filme, e dentro do filme um espectador, que se reconheça como proprietário de si … Volto a dizer que, enquanto não se explicar a ligação neuro-biológica entre células e ideias, pelo menos provisoriamente, não sabemos senão que, a existência de uma ideia obriga a um suporte material. Mas isso não permite uma visão do tipo memória informática (outro paralelismo comum), pela simples razão de não sabermos como se processa a intrinsecamente a consciência. E dizer “ainda não, mas lá chegará”, é uma manifestação da tal crença científica de que eu tenho andado a falar. uma boa noite :)
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Caro cbs: À beira da piscina não é fácil ter conversas :) , e reconheço as minhas limitações no campo da especulação filosófica ( também sou aprendiz)mas aqui vão dois apontamentos:
1 - "a fenomenologia não dispensa a distinção de três fenómenos reais, embora intimamente relacionados: a emoção, o sentimento dessa emoção e o conhecimento de que temos o sentimento dessa emoção" Nem a a fenomenologia nem a psicologia clínica nem sequer a psiquiatria clássica... Aliás muitos dos modelos de intervenção psicoterapêutica se baseiam nessa proposta d eabordagem fenomenológica e dinâmica. Mas isso em nada muda o cerne da discussão essencial, que é a de querer atribuír conotações "metafísicas", ou, se quiser, imateriais, aos processos mentais humanos. Qualquer um desses substractos ou níveis de abordagem da experiência subjectiva humana pressupõe FORÇOSAMENTE uma específica actividade neurofisiológico basal,que não apenas sustenta esse fenómeno como o explica materialmente, ou seja, sem a qual nenhum desses "fenómenos" sequer se produziria ( ou existiria).
2 - E sim, claramente que filosofia e ciência de alimentam e se interpenetram e que qualquer discurso sobre as ciências nunca é ideologicamente neutro, e sim, claramente que as raízes epistemológicas do conhecimento científico radicam na "filosofia"... Mas confundir conhecimento científico baseado na evidência com especulação filosófica pura, parece-me um erro de paralaxe...
3 - "como podemos nós inferir que as imagens são materiais? " Voltemos a uma coisa mais simples -o sentido da visão. EStá um copo em cima da mesa e eu olho para o copo. As "imagens" captadas pela retina e transmitidas por impulsos eléctricos a determinadas zonas cerebrais que permitem ao cérebro "ver" o copo , são imateriais?????? SE calhar o atrasado mental do Lenine até tinha razão quando dizia que o cérebro produz o pensamento, assim como o fígado segrega a bílis ( não sabia desta expressão, acho-a simplsta mas...) Ninguém diz que os processos de metabolização hepática são imateriais, apesar de resultarem do mesmo nível de complexidade bioquímica da actividade cerebral...MAs já para actividade cerebral e seus outputs, lá vem a metafísica do costume...
Bom fim de semana..
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Blue Não estava a confundir ciência com filosofia, estava sim a chamar a atenção para o facto de a biologia ciência ter alterado a abordagem mecanicista da filosofia do século XX, visível na crítica aos racionalismos com argumentos vitalistas. Mas o que distingue a ciência é a universalidade da verificabilidade do conhecimento e não propriamente a evidência. Como penso já ter dito, há uma evidência na demonstração lógica, mas há igualmente evidências de cariz intuitivo, menos típicas das ciências. Quanto à especulação filosófica, é tão pura como a científica (como a teoria das cordas, por exemplo) pois tem igualmente em conta o saber da ciência debruçando-se sobre problemas para além da ciência. A diferença estará mais no nível de objectividade das especulações, sendo as teorias da ciência mais aplicadas a um objecto particular (a unificação da relatividade com os quanta, do exemplo anterior) e as da filosofia a objectos mais subjectivos (o fenómeno do surgimento no mundo do próprio fenómeno, por exemplo). Mas talvez eu esteja a ser demasiado picuinhas… desculpa.
Quanto à matéria do material-imaterial… devo dizer que um dos gozos destas conversas, quando são tranquilas, é obrigar a pensar e a ler. Haverá um ponto onde concordamos, a matéria constituinte do universo apresenta-se sob duas formas, massa e energia, e uma não vem sem a outra. A concepção antiga, tanto da filosofia como da ciência, de que matéria era o extenso corpóreo, e o espírito o inextenso incorpóreo, está ultrapassada, já nem se devia colocar. Mas tenhamos em conta que ao referires as imagens captadas pela retina, elas não provêm apenas de impulsos eléctricos no cérebro, provem também da reflexão de ondas de fotões – por acaso quanta de energia sem massa – dos objectos para as células sensoriais… energia. Neste sentido, estamos a falar sempre de matéria, mas com uma abrangência que pouco tem a ver com o senso comum de corpos e massas. Será um ponto de concordância básico e universal. Na questão das imagens ou representações mentais, eu apenas acentuei que é preciso saber mais, não disse que eram anti-matéria:) Mas tenho uma ideia de espírito que fica fora disto, da noção de matéria dada por Einstein, e se prende à abordagem fenomenológica que tenho falado sem desenvolver (até porque, sinceramente, não a tenho clara). Há, penso eu, um saber secreto e profundo, no dado imediato da consciência humana a que Damásio chama o “sentimento de si”. Como referes o “sentimento de si” é o cogitatio cartesiano, mas nele reside uma revelação que não se insere no conceito normal de objectividade científica, acho-o de outra ordem, muito mais funda, poderosa e original. Eu acredito (note-se bem, acredito…) que o “aparecer no mundo”, a manifestação do ser, é preliminar a qualquer noção de objectividade. Aquilo a que chamo espírito é a Vida (a carne em termos religiosos) e é dela que partimos, mesmo que sem o perceber, para o conhecimento dos corpos, do nosso primeiro e depois dos outros.
bom fim de semana... com piscina, que inveja ;)
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"Aquilo a que chamo espírito é a Vida (a carne em termos religiosos) e é dela que partimos, mesmo que sem o perceber, para o conhecimento dos corpos, do nosso primeiro e depois dos outros."
Gostei muito deste parágrafo embora não o tenha compreendido completamente...
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Tem a ver com a relação entre a misteriosa frase de João “E o Verbo se fez carne” (1, 14) e a fenomenologia. Segundo uma observação profunda de Heidegger, a mesa não “toca” a parede contra a qual está colocada. A característica própria de um corpo vivo, como o nosso, é que ele sente cada objecto próximo. E ele não experiencia tudo isso senão porque primeiro se experiencia a si mesmo, no esforço que faz, no prazer ou dor que sente. O corpo que não sente difere assim essencialmente do que sente, e é a esse que chamo “carne”. Nesta relação entre o que sente e o que não sente há uma tensão que tem uma designação cristã: encarnação. Esta abordagem opõe-se à concepção que separa o corpo da alma, o sensível do inteligível, que é a nada mais, nada menos, do que a da filosofia grega. Parece-me estar aí o gérmen da futura separação entre o racionalismo e a emoção. Mas é grega a ideia que separa a animalidade do humano, enquanto animal provido de “logos”. É grega a ideia de que, ao contrário do animal sensível votado à decomposição e à morte, o “logos” se pode afastar do mundo sensível e unir-se ao “nous” eterno na contemplação do Inteligível. Estes esquemas platónicos serão mais tarde os da Gnose. Inverosimilmente, o Cristianismo vai pôr a salvação no corpo, vai colocar a identificação do Homem com Deus na encarnação, o que não cabia na cabeça de um grego, que desvalorizava o sensível. Ora este Deus segundo João é a Vida, e vida quer dizer experienciar-se, sentir-se a si mesmo. Esta definição muito simples de Deus, a partir da definição também simples de Vida como “pura experiencia de si” é o que me conduz à investigação fenomenológica de que falo. Chego assim à diferenciação fenomenológica dentro do próprio fenómeno, entre o conteúdo do mesmo, por um lado, e o facto do seu aparecer, por outro. Sem a manifestação pura não haveria fenómeno, a mesa seria incapaz de aparecer por si, não tem esse poder. E longe de ser a análise dos corpos, que é a da Ciência, a poder explicar a nossa “carne” – não falo dos tecidos, que são o seu suporte – creio que é esta, enquanto fenómeno puro, no aparecer original, que nos irá permitir conhecer qualquer coisa como um “corpo”, começando pelo nosso – e volto à distinção entre o “ver” e o “sentir que vejo”, Acontece que tenho ainda muito que ler e pensar. Sou velho, comecei por andar à volta do criticismo kantiano até que Nietzsche apareceu fulgurando como um raio, contestando e explicando o racionalismo, e prevendo o niilismo de que hoje padecemos. Depois foi o desgosto de o ver atacar Deus e apelar ao super-homem. Então conheci a amável filosofia bergsoniana da Vida. Mas Bergson ficou pelo princípio da fenomenologia, Husserl e Heidegger é que a desenvolveram. Finalmente estou mergulhado no Michel Henry e na sua fenomenologia da carne… ainda tenho que ler e pensar. Mas que fique claro, não vejo a ciência, a filosofia e a religião como saberes antagónicos. Têm em comum a eliminação da dúvida e a busca da Verdade. Em todos esses domínios existe a crença de que a Verdade existe e o seu conhecimento é atingível, ao menos parcialmente. São domínios complementares que em vez da desconfiança mútua, em vez do dogma fechado (de umas em relação às outras) se devem amparar. Parece-me tão pacóvia a desconfiança religiosa em relação à Ciência, como a incredulidade da Ciência em relação a Deus, quanto mais não seja porque lida quotidianamente com um Universo que se vai dando à compreensão. Isso não sugere um Criador?
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claro que ando à beira da excomunhão, como o Michel Henry ou o Teilhard de Chardin :)
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Muito bom o último texto sobre encarnação. Concordo quanto à raíz grega da cisão entre razão/emoção, corpo/espírito, soma/psique , cisão essa que nos acompanha há milénios os constructos deste lado do planeta. O dualismo cartesiano corpo/espírito mais não fez que recuperar a tradição filosófica escolástica de toda a tradição cristã, nesta espécie de déchirement obrigatório para se atingira a santidade ou a salvação. Sim, o conceito cristão de encarnação pode ser integrador, mas tem sido usado precisamente no sentido inverso - os discursos sobre a carne e a sua corrupção inevitável, sobre a animalidade do corpo versus a superioridade da cabeça (curioso como os discurso foi depois transposto para a identidade de género e relações de poder, fundadora da divina e “natural” subordinação das mulheres aos homens, dos pretos aos brancos, dos escravos aos senhores. O conceito católico de encarnação recupera a ideia da maldade intrínseca da carne que urge castrar, punir, domesticar (todos os discursos católicos sobre a sexualidade vão nesse sentido), os dogmas alucinados sobre a concepção de Cristo a acentuarem ainda mais esta clivagem de absurdo. Quanto à outra visão da encarnação (eventualmente católica mas no limiar da excomunhão libertadora, portanto muito mais próxima da verdade, provavelmente…) é uma visão integradora e redentora (o conceito moderno cristão de ressurreição da carne é algo de tão extraordinário como o conceito de encarnação) e curiosamente há uma tradição católica que a acompanha (ou a intui) desde o princípio da história do cristianismo, mas sem grande decantação teológica e doutrinária. Confesso a minha ignorância nestas áreas da fenomenologia do corpo, mas talvez que neste encontro /diálogo com a ciência se abram novas fronteiras. E aliás a ciência precisa de ser “iluminada” – no sentido filosófico - por algumas questões de fundo que ultrapassam a análise científica pura e dura – repara como os limites da investigação na área das biotecnologias da reprodução ou da genética levantam questões estruturais sobre os limites éticos do conhecimento. Essa concepção de encarnação que apontas leva a um outro limiar integrador do conceito da nossa própria humanidade (ou divindade). Aliás vai de encontro á questão emergente que tem a ver com esta sacralização da carne, tão típica deste início do século XXI…
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Caro cbs, a vontade que eu tenho de o convidar para um café para termos tempo de "discursar "fluidamente com algusm amigos sobre estas questões - sim comunicar em fluxos e redes - :)) - noite adentro.
Sobre o pulsar da vida mental (e do fluxo do pensamento, que alguns definem como o respirar da mente), é verdade que o modo como um padrão neural se torna numa imagem é um problema que a neurobiologia ainda não resolveu. Mas a palavra chave desta afirmação é a expressão AINDA.
A existência de lacunas no conhecimento científico sobre esse processo não significa que esse processo tenha qualquer coisa de imaterial ou transcendente. Pelo contrário - é precisamente na sua materialidade biofisiológica que se debruça o olhar perplexo do cientista.Nada há de imperativo metafísico no mistério ,pelo contrário, os mais abissais mistérios radicam precisamente na fisicalidade material ( ou energética)...
De facto, quando se afirma que as imagens "produzidas pela mente " resultam de padrões neurais,
trata-se , não de uma especulação pura ou filosófica ou de um acto de fé, mas de uma evidência científica. Sabemos hoje que essas "imagens mentais " NÂO podem surgir do nada, ou melhor, de mais nada, que não a actividade neuronal em rede.
Um exemplo paradigmático são, mais uma vez, as alucinações- eis um bom exemplo de como uma experiência "imaterial", imagética,subjectiva - se quiser uma "experiência subjectiva metafísica" - resulta de actividade cerebral específica.
Por definição, as alucinações são experiências perceptivas, sensoriais sem objecto ou estímulo externo. Simplificando - quando escuto uma voz existe um estímulo externo que explica a percepção.
Mas, e no caso das alucinações auditivas ?
As pessoas com estas experiências subjectivas têm percepções tão realistas e intensas como as que "ouvem" materialmente estímulos externos. Só que as vozes "escutadas" não existem para mais ninguém.
Então, o que se passa?
Um experiência metafísica, imaterial?
A certeza absoluta - porque subjectivamente experienciada mas impossível de provar materialmente - de uma experiência mística/transcendente?
Foi assim até há poucas décadas.
( Até que se descobriu , que alguns fármacos eliminavam ou reduziam drasticamente as alucinações.
Repito - fármacos. Nem rezas, nem benzeduras nem exorcismos. Substâncias químicas, que actuam a nível cerebral, em receptores específicos na fenda sináptica. Sabe-se hoje, com alguma consistência quais os sistemas de neurotransmissores implicados no processo.
Mas, o mais interessante foi o recurso à imagiologia, nomeadamente através de PET ( tomografia por emissão de positrões) para visualizar o cérebro de pessoas que sofrem este tipo de alucinação.
O PET demonstrou que durante as alucinações são activadas áreas cerebrais muito especificas (estruturas relacionadas com visão e audição).
Ou seja a experiência metafísica "inexplicável" corresponde a padrões cerebrais observáveis e mensuráveis.
E, curiosamente, quem estuda /trabalha sobre a mente e processo mentais, não faz essa distinção cartesiana entre diferença subtil, mas clara entre “ver” as coisas – vídeo – e “sentir que vemos".
Se sentimos que vemos, é porque vemos -a experi~encia subjectivamente situada é sempre real, ainda que não corresponda +a realidade.
Volto a isto porque há uma petite histoire precisamente sobre Descartes. Descartes teria um problema neurológico de base e sofreria de alucinações... o que explica a criação de um método para distinguir o real do não real...