segunda-feira, outubro 27, 2008 |
Recordação |
A primeira vez que rezei, tinha cerca de nove ou dez anos. Foi evidentemente bastante estapafúrdio, de algum modo vergonhoso segundo a etiqueta comportamental do mundo e da razão, pelo menos relativamente ao parco conhecimento que tenho dos seus modos de acontecerem e agirem. A mim, Ele não precisou de dizer para fechar a porta.
Aconteceu que um colega de escola, que tinha sempre notas acima de 14 me disse quando o inquiri acerca do seu método: Na véspera dos testes, rezo e peço a Deus que me dê sempre boa nota.
Não me falou de estudar, ou reflectir, ou assim me lembro eu: pois então rezo, peço ao Senhor do universo, é evidente, para quê perder tempo com circumnavegações, vou a corta-mato, directo ao assunto, então pois… rezo. E foi o que, sem fazer a mínima mas com a audácia e disponibilidade da infância, me dispus a fazer pela minha parte, e pelo mesmo assunto, não fosse alguma improvisação afectar a verificação da Sua existência - digo eu agora, algo indiciado pelo toque absurdo de, gostando eu na época de estudar, conversar e reflectir, obter geralmente as notas a pedir ao Improvável e Totalmente Desconhecido. Nem sequer usei o mediador Jesus, penso eu, não tivera catequese oficiosa, e além disso não se tratava de ir a corta-mato directo ao assunto?... Lembro-me de pôr-me de joelhos junto à cama, fechar os olhos e concentrar-me, falando e escutando no profundo silêncio da Sua ausência.
Imaginemos agora, visto que se ressente o passado na configuração do presente, que funcionava – enquanto pedido, obtenção, requisição. Pois nada disso ressinto eu agora como fulcral na recordação – a não ser como instigação à suspeita da Sua improvável mas interpelante existência. Até porque acabamos por perceber que o que se obtém e não obtém por aqui tem o valor da efemeridade, varrido e disperso como quase nada pelo nosso amigo tempo. E recordo-me como confusamente desejando não essencialmente os pedidos específicos, mas a esperança e anseio indefinido de algo que rasgasse a efemeridade, a existência à mercê dos dias cegos. Qualquer coisa que não tem nome por aqui.
Rezar serenava a violência melancólica da minha infância, depondo-me noutra violência em que a melancolia se transmuda em busca e apelo.
Não se trata aqui de relevar o que de supersticioso e egótico e ilusório e preguiçoso e cobarde pode haver nas orações como em todas as nossas atitudes e actividades, mas sim de entrever o Algo que pode surgir nessa actividade da oração, na atitude religiosa, e que vem pôr em interrogação essa actividade e essa atitude assim como todas as outras. É nos nossos gaguejos humanos demasiado humanos que acabamos por tropeçar para fora e dentro de nós, onde uma mão nos agarra ou o nada nos dissolve. A que corresponde a actividade da oração e a atitude religiosa – as respostas são tantas quanto as concepções de realidade.
Lembro-me que acabei por deixar de rezar, aquilo assustou-me, era por assim dizer demais para mim – acabei por deixar de rezar, durante cinco ou seis anos.
Isto tem sido uma difícil catequese.
Até porque com Ele nada funciona sempre da mesma maneira, não estamos de todo no reino da necessidade e do automatismo.
E o barco prossegue, puxado pela graça e pela confusão.
Vítor Mácula |
posted by @ 11:35 da manhã |
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