domingo, outubro 17, 2010
Do “mundo sensível” 3 – a redução galileana
Antes de compreender o próprio mundo como mundo da vida (Lebenswelt) – segundo a expressão de Husserl – convém abrir um parêntesis histórico. O mundo sensível é objecto de uma critica radical no início do século XVII. Esta acarreta, paralelamente, uma transformação na concepção tradicional do corpo. É a natureza sensível desse mundo, assim como dos corpos que o compõem, que é posta, brutalmente, em causa e rejeitada. Diversamente das modificações que afectam as grandes civilizações, e se estendem sobre longos períodos, resultando de uma multiplicidade de causas, o acontecimento decisivo, que constitui na história do pensamento humano, a desagregação da concepção ancestral do corpo, resulta de uma decisão intelectual. Tomada por Galileu, no início dos tempos modernos, podemos considerá-la como o acto proto-fundador da ciência moderna e, na medida em que esta vai doravante conduzir o mundo, de toda a Modernidade.

A afirmação categórica de Galileu é que, este corpo sensível que tomamos pelo corpo real – este corpo que se pode ver, tocar, sentir, ouvir, que tem cores, odores, qualidades tácteis, sonoras, etc. – é só uma ilusão, e o universo real não é composto por corpos deste género. É também por isso que o conhecimento do universo real não pode ser o conhecimento sensível considerado, desde sempre, pela Escolástica, como o Sol de todo o saber humano. Na verdade, o universo real é formado de corpos materiais extensos, e esta matéria constitui precisamente a realidade desses corpos e, de igual modo, a do Universo. É este corpo material extenso, provido de formas que se trata de conhecer, e o que é próprio de uma tal substância extensa é a sua delimitação por figuras, apresentando certas formas. Ora, existe uma ciência das figuras e formas puras, adaptada ao conhecimento dos corpos materiais extensos que compõem o universo real: é a Geometria. Ela é a ciência pura, que dá lugar ao conhecimento racional das figuras e das formas, porque em vez de apenas as descrever na sua facticidade, procede mesmo à sua construção ideal. De tal modo que as propriedades geométricas se tornam plenamente compreensíveis e necessárias. Uma necessidade a priori, a partir dessa construção, que desempenha o papel de foco de inteligibilidade. Ao conhecimento sensível dos corpos sensíveis, que dizer, às suas qualidades sensíveis, opõe-se assim, um conhecimento racional das figuras e das formas de corpos reais, extensos, do universo material da Geometria. Enquanto o primeiro dá apenas lugar a proposições singulares, o segundo constrói proposições necessárias, de validade universal e, como tal, cientifica.

Mas a decisão galileana de instaurar um conhecimento geométrico do universo material não procede apenas à fundação da ciência moderna. No plano da realidade, e já não do conhecimento, ela vai operar a substituição do corpo sensível por um corpo até aí desconhecido, o corpo científico. Porque o corpo material extenso, cujas figuras e formas são apreensíveis geometricamente, não é só o corpo inerte das “coisas”, mas é também o do próprio homem. E é isso que é novo, e que abre uma nova era fundada numa concepção inédita do corpo humano, e por consequência, do próprio homem. Assim nasce a pretensão, por parte da ciência geométrica da natureza material, de constituir, doravante, o verdadeiro saber do homem. E, correlativamente, a pretensão, por parte de uma nova técnica, também ela cientifica e material, em si estranha ao homem, de fornecer a verdadeira aproximação ao mesmo homem, de o procurar no mais intimo do seu ser, até no prazer, no coração do seu sofrimento ou do seu desanimo, da sua vida ou da sua morte.
Michel Henri por cbs

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