para a Isabel Sales Henriques
A primeira impressão que se tem quando se lê a Bíblia sem mais, que é afinal a primeira maneira de ler seja o que for, é uma espécie de multiplicidade disparada. Passa-se algo de semelhante ao que nos acontece com os grandes romances: uma série infinda de acontecimentos e personagens interpelam-nos, narram-se e são narrados, numa sucessão confusa de peripécias e sentidos. De Adão a Jesus há uma linha, uma genealogia, um trajecto; Abraão, Moisés, David, Job, Maria Madalena, e tantos outros, invadem a nossa casa e passam a habitar nela, como irmãos mais velhos que nos contam como a vida é, o que significa estar aqui sem mais, vivos, se é que significa alguma coisa. A nossa própria vida, claro está.
O personagem que doa unidade a tal panóplia é, como se sabe, o denominado Deus. Que ele se apresente sob diversos números e nomes, sentidos e modos, da sua pluralidade genésica à sua unidade mosaica, do arbusto em chamas ao trovão e à brisa suave até à humanidade de Jesus – ele é o personagem transversal, cujos inúmeros rostos e significados constituem precisamente essa transversalidade. Deus é dado como um ir-a, um chamamento que ecoa de Adão escondendo-se à conversão cristã. Este referente faz com que os textos bíblicos sejam atravessados por uma peculiar remissão para fora de si próprios, isto é, para fora da sua leitura, assim como dos seus próprios conteúdos. Vai e faz, vem e escuta – é o estertor que os atravessa. São textos que dizem: isto é contigo que nos lês, é maximamente contigo. E isto que é contigo, não é algo contido nestas palavras e contextos, isto que é contigo é o Deus eterno que te criou e chama. Ele te revelará o que és na tua verdade e vida. É como se este personagem fosse uma intensificação da experiência geral da narração, e que a sua habitação em nós deflagre com tremenda presença e força no concreto da nossa vida. Quer abracemos a sua presença, quer a neguemos – nunca mais somos os mesmos. E há que dar uma certa razão aos que pretendem que o monoteísmo é perigoso, visto ser verdade que, na aceitação ou na recusa, pode enlouquecer qualquer um. A dinâmica de tais textos, no seu apelo a um diálogo vivo, ao empurrarem-nos para fora das suas narrativas mergulhando-nos na nossa, dá-se também nos seus próprios conteúdos. Todos se centram em encontros e diálogos: pessoas, anjos e deuses, que mutuamente se transformam. Para clímax de tal indiciação, temos o próprio Deus revelando-se no humano, fazendo-se carne em Jesus, esse mesmo Deus que regateara com Abraão os justos de Sodoma e que debatera a existência de Job com Satanás, fazendo um trato com este. A inclusão, no corpo canónico do novo testamento, de uma alargada série de epístolas, confirma veementemente a dialogalidade originária do judaísmo; e a trindade cristã é outro eco desta estapafúrdia noção de que no princípio está o diálogo, a mútua palavra que escuta e é escutada.
Vítor Mácula
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Excelente texto, Vítor.