quinta-feira, outubro 04, 2007
elogio da tonsura ou a realpolitik ao serviço de Deus (1)
Na muito interessante discussão que está a acontecer aqui em baixo surgiu, pela voz habitual do Pedro Leal, a alusão a um tema que lhe é muito caro a ele e a muitos protestantes: a separação entre Igreja e Estado. O Antonius, o Nuno, deram umas achegas importantes e para mim originais mas eu queria também acrescentar umas coisas minhas.
Como em tudo o resto, nós Cristãos procuramos perceber e sobretudo julgar a nossa Igreja pelo «bias» da escala de tempo humana. Quero eu dizer que nos preocupa aquilo que vemos acontecer no nosso tempo de vida: desde os antepassados que ainda chegámos a conhecer até, no máximo, aos nossos bisnetos. Acontece que a Igreja, no seu sentido mais lato, não funciona, não pensa, não decide, não age senão numa escala de tempo antropológica, para não dizer geológica. Convém nunca esquecer que à Igreja foi prometida a eternidade, nem mais nem menos. E por isso a sua perenidade é talvez a sua maior e mais tremenda obrigação perante Deus e perante a Humanidade. Digo Humanidade e não homens individuais.
Quem se interessa um pouco pelas organizações humanas perceberá aquilo que eu quero dizer: a obrigação de perenidade para uma organização é um desafio tremendo, impossível, pois elas são consubstanciais ao Homem e padecem de toda a nossa finitude. É por isso que não é nada estúpido aquele argumento, tão criticado, de que a misteriosa longevidade da Igreja Católica é mais um argumento de prova da Religião Cristã. Todos os cristão lhe deveriam estar gratos por isso e, a mim, é algo que consola a minha fé.
A Igreja, que surgiu na História depois de incontáveis milhões de homens que morreram antes da vinda de Cristo, tem que se preocupar com todos os incontáveis milhões que vieram e virão depois. Com todos eles, mais do que com cada um deles. Por isso para a Igreja um período negro de praí 400 anos pode ter sido chato mas de forma nenhuma foi irremediável. E mais ainda: pode ter sido necessário.
O Antonius fala aí em baixo dum tema que muito me interessou há uns anos: a emergência e brutal repressão da heresia cátara e que vem bem a propósito. O catarismo, herdeiro do maniqueísmo e do gnosticismo cristão, surgiu e prosperou em terras da Occitânia como reacção contra os feíssimos pecados do clero católico e como afirmação de identidade nacional contra o emergente hegemonismo francês. E aqui, como em tantos outros casos, a Igreja e o Estado, nas pessoas do Papa Honório II e o rei Filipe Augusto de França, vendo aquele um mortal perigo para o Catolicismo e este uma oportunidade única de restaurar e desfeudalizar o reino de França, aliaram-se os dois numa brutal cruzada contra os cátaros (em que um santo varão terá dito este naco de piedade cristã: «matem-nos a todos, Deus saberá distinguir os seus») e lá deram cabo daqueles pobres diabos. Foi horrível, foi uma nódoa indelével na autoridade moral da Igreja cuja cicatriz ainda dói, foi sim senhor, é um daqueles erros de que a Igreja de hoje se vem penitenciando tão justamente. Mas o facto é que o lamentável estado em que a Igreja tinha na altura caído, tornava altamente provável que uma seita como os cátaros com os seu sacerdotes puríssimos chamados perfeitos, com o seu rito do consolamentum para todos, teve nesse tempo fortíssimas hipóteses de varrer o Cristianismo daquela zona da Europa. E se atentarmos melhor para a sua doutrina ou aquilo que dela se sabe, vê-se a perigosíssima e insidiosíssima ameaça que ela constituía para a integridade da mensagem de Cristo, a ponto de que se tivesse vingado talvez hoje já não houvesse Cristianismo. Mas quem tinha autoridade na Terra para decidir isto? É o que se vem discutindo. E foi bem decidido? A minha opinião, do confortável lugar em que me sento e na estrita perspectiva em que estou a falar, é que sim senhor foi bem decidido. Sobretudo considerando que a Igreja Católica, tendo percebido a degradação doutrinal e ética em que tinha caído, se reinventou. As ordens mendicantes e pregadoras de que o Antonius falou são bom exemplo disso.
Bom, isto está a ficar grande e ainda não disse tudo. Resumamos pois: eis aí em cima um belo exemplo de cumplicidade entre a Igreja e o Estado, misturando-se os pios propósitos com os frios cálculos políticos, num genocídio horrendo. Não tenho dúvidas de que os papas e reis, os monges e soldados que nele participaram, ardem hoje no fogo que não se extingue. Mas nessa ocasião lixada, como em muitas outras, a perenidade da Igreja foi assegurada. Por isso, meus irmãos em Cristo, não digam tanto mal desses clérigos tenebrosos, desses papas venais. Eles condenaram-se a eles próprios em prol da nossa salvação!
Podem começar já a chamar-me nomes mas, pelo menos, vão antes à wikipedia. E fiquem sabendo que voltarei ao assunto. Até logo.
josé

posted by @ 9:43 da manhã  
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