segunda-feira, maio 28, 2007
o trabalho dos outros liberta
1. O trabalho é um castigo, uma pena infligida ao Homem como consequência da quebra da aliança original com Deus: «Deus disse ao homem: Já que deste ouvidos à tua mulher e comeste da árvore cujo fruto Eu te tinha proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Enquanto viveres, dela te alimentarás com fadiga. A terra produzir-te-á espinhos e ervas daninhas, e comerás a erva dos campos. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes para a terra, pois dela foste tirado. Tu és pó, e ao pó voltarás» (Génesis 3:17-19).

A doutrina cristã sobre esta ferida aberta na condição humana coloca o acento tónico na ética do trabalho, no bonum arduum que exprime e aumenta a dignidade do homem e que «faculta ao homem tornar-se bom como homem» (S. Tomás de Aquino, Summa Theologica) .
João Paulo II, no que parece ser uma irónica apreciação sobre esta realidade, foi ainda mais longe: «no trabalho humano, o cristão encontra uma pequena parcela da cruz de Cristo e aceita-a com o mesmo espírito de redenção com que Cristo aceitou por nós a Sua Cruz». E mais: «suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora, de algum modo, com o Filho de Deus na redenção da humanidade» (Laborem Exercens, 27).
Nesta Encíclica a Igreja alerta contra aqueles que usam o trabalho contra o homem ("o trabalho liberta", lia-se à entrada do campo de concentração nazi de Auschwitz), mesmo se sob a capa moderna da separação e contraposição entre o capital e o trabalho, tratando-as como duas realidades distintas, tão do agrado do pensamento neo-liberal, a que João Paulo II apelidou de "economicismo" (Laborem Exercens, 13).

2. Em rigor, é aqui que se deve recentrar a questão do trabalho: nas vítimas da coerção social que representa o moderno sistema de produção de bens e venda de serviços. Com a excepção das actividades ligadas à criação, da produção artística, literária, de reflexão, etc., e eventualmente alguma actividade científica, a grande parte do trabalho da maior parte dos assalariados consiste no desempenho de tarefas monótonas e desinteressantes, separadas da vida, das relações sociais, culturais, religiosas, culturais que cada um de nós optaria em viver fora do contexto laboral.
Recorde-se que o vocábulo latino laborare significa qualquer coisa como "cambalear sob uma carga pesada" e, regra geral, referia-se ao trabalho escravo. A palavra trabalho deriva também do latim tripalium, que designa um jugo utilizado para torturar e castigar escravos. Etimologicamente refere-se à actividade daqueles que perderam a liberdade. Em suma, trabalhar é um sinónimo de um tormento social infeliz.

Como forma de encobrir esta evidência, muitos autores e responsáveis pela gestão dos "recursos humanos" (e esta expressão já é reveladora da ideologia subjacente) dedicam-se ao estudo minucioso dos factores de motivação, da simulação de competências, da promoção de sentidos vários para o conteúdo dos trabalhos. Para tal, socorrem-se de todas as pequenas misérias humanas, às quais somos sensíveis: o dinheiro, a segurança, o prestígio, a afectividade, a “realização”, enfim, toda uma panóplia de coisas e sentimentos que visam melhorar a auto-estima de cada um. Basta ler o execrável best-seller de Spencer Johnson, «Quem mexeu no meu queijo?», para o perceber.


3. Mas, com a anunciada crise do trabalho, como consequência do economicismo de que falava João Paulo II – e que se traduz no desemprego duradouro de cada vez mais indivíduos, face ao cada vez mais reduzido número de trabalhadores necessários para executar as mesmas actividades nas empresas, a par do constante desenvolvimento tecnológico, do abandono de terrenos de cultivo e unidades industriais e do crescente aumento dos excluídos do sistema capitalista de produção económica – como superar a maldição de Deus sobre a fadiga em que o trabalho se traduz?

É que o dogma sacrificial do trabalho, como princípio social, de participação na construção colectiva da sociedade, ou a idolatria do trabalho tão do agrado dos capitalistas e seus servos, bem como dos sindicalistas tradicionais, ou mesmo a santidade do trabalho enquanto colaboração na redenção da humanidade, como o apresenta a Igreja, vê corrompido o seu objecto. A antiga condenação do homem ao trabalho penoso perde o seu significado, em função das transformações sociais e políticas à escala global. Hoje, como se lê no «Manifesto Contra o Trabalho», do Grupo Krisis (Ed. Antígona), o «comerás o teu pão com o suor do teu rosto» transfigura-se num «não comerás, porque o teu suor é supérfluo e invendável».


4. E eis que nos chegam os libertadores. A corja de mercadores de grandes superfícies quer libertar-nos dessa opressão que é o facto de não podermos exercer o nosso primordial direito fundamental de consumir mercearias nos seus armazéns aos domingos à tarde.
O antiquado conceito de que "a minha liberdade acaba onde começa a liberdade dos outros" (noção errónea, porquanto as liberdades ampliam-se mutuamente, em vez de se restringirem; pensemos na liberdade de associação ou de reunião, por exemplo; podem é colidir com outros direitos, mas isso é outra conversa) tem aqui a sua expressão mais dialética possível: lá se vai a liberdade de descanso dos técnicos de leitura do código de barras e dos responsáveis pela recolha pecuniária. Vão continuar a ser pagos principescamente (ou até melhor, uma vez que os príncipes não têm salário) e ter a honra de contribuir para o bem comum desta raça preguiçosa e egoísta em que Portugal se transformou.

Eu já fiz a minha parte. Fui ao site dos libertadores, assinei "Vão roubar para a estrada" e digitei um número qualquer com sete algarismos.
Os meus dados foram submetidos com sucesso.

Carlos Cunha

posted by @ 12:27 da tarde  
20 Comments:
  • At 28 de maio de 2007 às 14:13, Blogger zazie said…

    ahahahahaha

    Que post delicioso.

    Esta esquerda já não existe. Já ninguém lê o Lafargue.

    Parabéns, CC. E parabéns pela ironia da cruz e da libertação por nº- à Big Brother

     
  • At 28 de maio de 2007 às 14:15, Blogger zazie said…

    A propósito, tens o link dos "libertadores" mal feito.

    E eu é que vou linkar este post

     
  • At 28 de maio de 2007 às 14:17, Blogger CC said…

    Obrigado, zazie.
    Já corrigi o linque.

     
  • At 28 de maio de 2007 às 14:42, Blogger zazie said…

    Fui lá mandar-lhes uma boca no género e digitei como BI: 1234567

    Apareceu um pop up a dizer que esse nº já estava registado

    loooooooooooooolll

     
  • At 28 de maio de 2007 às 14:50, Blogger CC said…

    Convém que comece por 8 ou 9. Se começar por 1 tem de ter oito dígitos (e não sete) e o segundo deles ser 0 ou 1.

     
  • At 28 de maio de 2007 às 15:01, Blogger zazie said…

    Vê lá mas é se ainda contamos como cidadãos apoiantes, com o nº tatuado no pescoço

    ":O)))

     
  • At 28 de maio de 2007 às 15:37, Blogger zazie said…

    Sem querer chatear, todos os outro liques não funcionam

    eheh

     
  • At 28 de maio de 2007 às 15:52, Blogger CC said…

    ups! já está.

     
  • At 28 de maio de 2007 às 20:18, Blogger Hadassah said…

    Está excelente este post.

    Pessoalmente tento não fazer compras ao Domingo, porque entendo que o devo reservar para o Senhor. Mas de vez em quando cometo o "pecadinho".

    E sinto-me uma "indecente" para com Deus e os trabalhadores, quando deixo alguma compra para aqueles dias de véspera ou de Feriado (como Páscoa, Natal, etc...), mas já tem acontecido...que vergonha!

    E vou já boicotar tbém, ai vou vou...

     
  • At 28 de maio de 2007 às 22:56, Blogger zazie said…

    Tive que vír cá dizer novamente que está um excelente post

    ahaha
    É que está mesmo. Rigoroso, erudito e de uma ironia espantosa.

     
  • At 28 de maio de 2007 às 22:58, Blogger cbs said…

    Tá excelente a tua escrita Carlos, concordo.

    Discordo é quase completamente dela, não vejo o trabalho como sacrifício, antes como uma forma de crescimento pessoal, mesmo nas tarefas monótonas e desinteressantes, como seja lavar latrinas.

    E concordo com os mercadores. Gostava que estivessem abertos quando posso ir às compras e não quando estou a trabalhar.

    «comerás o teu pão com o suor do teu rosto» significa pra mim uma forma de amor, do próximo, do suor, do trabalho e do resto, nem só do pão (há tantos a suar por esses ginásios fora)

    Não me queixo, sou completamente amarelo :)
    Em Cristo

     
  • At 28 de maio de 2007 às 22:59, Blogger zazie said…

    Agora é que o Tiago tem motivos para dizer que me descafandrei

    ahahahahaha

     
  • At 28 de maio de 2007 às 23:01, Blogger zazie said…

    No meu caso concordo com tudo. E não sou esquerdalha. Mas assino o teor do post em toda a linha.

    Tudinho, totalmente descafandrado

     
  • At 28 de maio de 2007 às 23:04, Blogger zazie said…

    É um post anti-burguês

    ":O))
    Não é por acaso que o Dragão também gostou tanto dele.

     
  • At 28 de maio de 2007 às 23:04, Blogger cbs said…

    "Porque os outros se compram e se vendem
    E os seus gestos dão sempre dividendo.
    Porque os outros são hábeis mas tu não.
    Porque os outros vão à sombra dos abrigos
    E tu vais de mãos dadas com os perigos.
    Porque os outros calculam mas tu não." Sophia M-B

    "A maior parte dos que a cantaram andam agora aí a calcular" post na natureza do Mal

    não serão todos?
    aqui há tempos numa aula, um jovem grande professor, dizia que aquilo que move a democracia e a economia... é a "inveja", se aquele tem,porque não eu?
    Ao menos não se esconda como se fosse "virtude"

    ... há pessoas que deviam ter sido poupadas á vida (eu por exemplo)

     
  • At 28 de maio de 2007 às 23:09, Blogger zazie said…

    cbs,

    Não digas disparates. Não é de nada disso que o texto trata. Isto é um espantoso manifesto contra o economicismo. Contra a alienação da uns em prol da fuçanga de outros.

    Em uma rajada em cheio nos mitos da modernidade- nas merdoquices da alienação do que o há de mais rico em nós. E o que há de mais rico não é ser máquina de consumo ou engrengem de produçãozinha. Por já nem se saber valorizar o tempo.

     
  • At 28 de maio de 2007 às 23:17, Blogger zazie said…

    Aquele crescimento pessoal das caixas de supermercado, então é cá uma coisa espantosa. O que elas crescem sentadas a passar códigos de barras até ao domingo. E pagas mais do que principescamente, como diz o CC.

    É um grande post. Aos 20 aninhos já eu pensava isto e ainda nem tinhamos chegado ao extremo de hoje.

    Este é um aspecto que no Norte da Europa se entende melhor, pelo menos, no que toca ao fim-de-semana. Por terem a tal tradição protestante que a Hadassah refeiu logo.

    È por isso que nós estamos na cauda da Europa mas "moderníssimos" Com caixas multi-banco em todas as esquinas e hipermercados e centros comerciais à la gardere. Vais para Bélgica, por exemplo, e tens o comércio de grande superfície fechado aos fins-de-semana.
    A nossa descaracterização também passa por aqui. Atraso até muito tarde e salto para novo-riquismo à "americana".

     
  • At 28 de maio de 2007 às 23:20, Blogger zazie said…

    Agora o que é verdade é que é um pensamento que já nem se encontra para a esquerda ou para a direita. Deu tudo em "progressista" de Porcalhota e pronto, anda tudo a correr atrás sabe-se lá do quê. Do "pogresso"... do pogresso feitos robots
    ":O)))

     
  • At 28 de maio de 2007 às 23:51, Blogger Hadassah said…

    lol

    "O que elas crescem sentadas a passar códigos de barras até ao domingo."

    ahaha

    o cbs estava a "pedi-las"

     
  • At 29 de maio de 2007 às 09:55, Blogger cbs said…

    "o cbs estava a "pedi-las"
    reconheces a verdadeira atitude cristã :)

     
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