segunda-feira, maio 03, 2010
Verdade e laicidade IV
A tentativa de dissolução da religião na filosofia, busca no fundo o fim da secularização. De alguma forma, é o que Feuerbach nos finais do século XIX propunha na Essência do Cristianismo onde desmistificando a transcendência da religião, a reduzia à própria natureza do Homem.
“Tu crês no Amor como uma propriedade divina porque tu próprio amas; crês que Deus existe, que é portanto um sujeito – o que existe é um sujeito, seja este sujeito determinado e designado como substancia, ou pessoa, ou essência, ou de outro modo qualquer – porque tu próprio existes, tu próprio és sujeito” p.29
“A fé no Deus que se fez homem por amor – e este Deus é o ponto central da religião cristã – não é senão a fé no amor, mas a fé no amor é a fé na verdade e divindade do coração humano)” p. 61
Ludwig Feuerbach, A essência do Cristianismo, Lisboa, FGG 1994

Creio que estamos em presença, já não apenas de secularização, entendida como separação do religioso e do laico - que a Teologia tentando a racionalização da Revelação, fundamento do religioso cristão, enceta ao quebrar o primitivo universo mítico integrador - mas na presença da laicidade, enquanto secularização dos próprios fundamentos do religioso.
Mas a génese desta laicidade não estará também, na própria natureza do Cristianismo, como aventava Nietzche?
“Ce qui est en question, c’est avant tout le processus d’hellénisation qui, en investissant le christianisme originaire, ressaisirait son fondement doctrinal et explicatif au sein d’une métaphysique de type platonicien se fondant elle-même sur la normativité de l’ultraterrestre a l’égard du terrestre: le processus entrainerait alors le christianisme avec soi dans ses aboutissements inévitablement nihilistes” Sergio Vattimo, Au-delà du Christianisme sécularisé, in La sécularisation de la pensée, Pris, éd. Du Seuil 1988, p.122

Neste sentido seria a filosofia, com o seu fim, a arrastar consigo a religião, e estaria a redenção daquela, na natureza específica da religião, nomeadamente a cristã. Na tragédia da cruz, caminho para a relação íntima do homem com Deus, ou seja, na experiencia religiosa mística residiria a ultrapassagem do niilismo, o que Franco Crespi (Perte du sens et experience religieuse) considera o non-sens da secularização. Não estará aqui a causa do ressurgimento dos fanatismos religiosos a que assistimos hoje?
Contudo, a simbiose entre Revelação e Razão não se deu apenas no universo platónico, mas também, e sobretudo, com o aristotélico na sua expressão tomista. Os princípios do aristotelismo aplicados ao conhecimento de Deus, que é o da Revelação, são levados às últimas consequências na Suma Theologica. Na visão da Igreja, quer através da doutrina dos Concílios ecuménicos da época contemporânea, quer na dos papas, não existe pessimismo quanto ao futuro da dita simbiose, é confiando na razão e no “serviço” que esta pode prestar ao Cristianismo, que se assume a esperança da “salvação” da religião e, consequentemente a da civilização cristã.
Mas é inegável que os fundamentos da civilização ocidental estão em mutação. E se se alteram as ideias-chave sobre as quais se construiu o edifício, não se poderão manter por muito tempo as ideias de Bem e de Mal, e consequentemente a axiologia de matriz cristã, que assim tende a perder sentido. E embora o termo laicidade tenha no seu étimo uma ligação explícita com o religioso, em relação ao qual se apõe e opõe, neste contexto a laicização fundamentaliza-se.
Não é esta uma mera questão intelectual. Se ao nível do pensamento e, portanto, das ideias formuladas especulativamente, a aproximação entre o religioso e a laicidade está relativamente bem definida, o mesmo já não se pode dizer em relação à vivência – individual ou colectiva – do fenómeno religioso, e ao papel deste no interior dos estados laicos contemporâneos. Assim, o recrudescimento das religiões, nomeadamente da cristã, bem como a visibilidade das questões éticas, cada vez mais complexas, obriga-nos a uma reflexão profunda sobre os elementos que compõem o nosso fundo civilizacional.

Fernanda Enes por cbs

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posted by @ 11:37 da tarde  
7 Comments:
  • At 5 de maio de 2010 às 05:15, Blogger BLUESMILE said…

    Este comentário foi removido pelo autor.

     
  • At 5 de maio de 2010 às 05:18, Blogger BLUESMILE said…

    Objectivamente não me parece que haja um recrudescimento das religiões no mundo ocidental.

    O paradoxo observável é precisamente o oposto - a vivência extremada da religiosidade, com uma complexidae e floresc~encia quase barroca, o fundamentalismo religioso, um sectarismo irracional que corrói os alicerces da racionalidade e dos próprios pressupostos civilizacionais que temos hoje como adquiridos - direitos humanos, liberdade de expressão, equidade , justiça,democracia, paz.

    Não são palavras vãs nem conceitos nihilistas, mas uma realidade social muito concreta que foi construída ao longo dos últimos três séculos na Europa ocidental.

    Nesse sentido, defender a laicidade cristã é a última ratio que nos resta.

     
  • At 5 de maio de 2010 às 22:30, Blogger cbs said…

    Creio que não podemos confundir o decréscimo do catolicismo na Europa (que não no resto do Mundo) com o cristianismo no Ocidente. Esse tem aumentado em especial na América (se bem que parte seja designado como seitas).

    Quanto à laicidade, eu (e a Igreja católica) concordo com a separação entre religião e estado. Aquilo que o texto refere é o radicalismo dessa separação, quando não apenas separa, mas tenta reduzir a expressão religiosa. E no Ocidente, desacreditar a religião por um lado (o que é diferente de laicidade, como prova a América do Norte, laica mas religiosa) e, por outro fazer equivaler todas as religiões(é importante perceber que a Cristã não é como as outras para nós, está na nossa matriz moral) objectiva uma redução da religião na Europa.
    Da qual discordo, que vejo como perigosa e facilitadora do cépticismo reinante, nihilista na acepção de Nietzche.

     
  • At 6 de maio de 2010 às 05:23, Blogger cbs said…

    Blue
    Peço desculpa, pois li apressadamente, e respondi ao lado.
    volto portanto...
    A primeira questão, do extremismo religioso no Ocidente, da irracionalidade, das bases valores civilizacionais. Não compreendi bem, mas admitindo que há extremismo religioso cristão no Ocidente (é muito mais visível a Oriente) não será na Igreja Católica. Claro que o fundamentalismo à solta (não apenas o religioso) sobrepondo a fé à razão, acaba por ferir o catálogo de bens humanos, que referes, que estão plasmados na carta das nações unidas como Direitos do Homem. E que têm as raízes na moral cristã ocidental, já agora.
    Mas aquilo que o texto tenta traduzir é que a simbiose entre razão e fé, característica do cristianismo, em particular do catolicismo, que nos pode proteger do pessimismo, e dos fundamentalismos dele resultantes.

    A outra questão que o texto tenta evidenciar é o perigo da secularização, que primeiramente é a separação entre sagrado e profano (válida para ambos os campos), e depois se pode transformar numa separação que fira os próprios fundamentos do sagrado (aqui designada como laicidade, mas o termo não é a questão); ou seja, se o movimento fundamentalista atinge o âmago da fé, racionalizando-a (e não partindo do sagrado para o raacional, mas fazendo o movimento contrario), temos o caldo entornado. Temos uma “religião” construída a partir da razão (e não da fé) que se tornará abstracta, com um Deus abstracto (e o Deus cristão é pessoal, não é conceptual) que no passo seguinte - como Nietzsche previa na Genealogia da Moral – é morto em nome da verdade (verdade racional, note-se) e substituído então pelo Homem. E finalmente, suprimindo não só o ideal-deus, mas todos os ideais (relativismo). O Nihilismo, como o ateísmo, segundo Nietzsche, resulta da aplicação do ideal da sinceridade escrupulosa (religiosa), e em seguida da honestidade intelectual rigorosa (cientifica), ambas geradas pela influência de ascése do Cristianismo. “a catástrofe imposta pela disciplina, duas vezes milenar, do instinto de verdade que no final das contas interdita a mentira da fé em Deus” diz o filósofo.
    Depois, na modernidade, apagada a fé – a quebra da verdade una conjuga-se depois com a emergência de outras fés, outras verdades - e só apoiada na razão, a ciência e a cultura caminharam para o relativismo e daí para o cepticismo dominante do Ocidente actual. Próximo do niilismo de que falava o filosofo, em que a desvalorização leva à ausência de finalidade, e por fim à morte da cultura. É uma questão de referências e da sua perda por ficar tudo igual – e aqui aparecem as novas, complexas, questões éticas contemporâneas, apanhando-nos desarmados senão distinguirmos o bem do mal - tudo equivalente...desidentitário, e sem identidade, morre-se. Talvez por isso, por uma questão inata de sobrevivência, haja o tal ressurgimento dos fundamentalismos da fé.
    Voltamos então ao início. Opondo-nos a Nietzsche, pensamos (nós cristãos) que só reconciliando o sagrado com o racional, que é o da Revelação intelectualizada na Suma Theologica de S. Tomás, e depois na doutrina dos Concílios contemporâneos (onde o Vaticano II reitera a simbiose “fé com razão” que refiro sempre), podemos nós confiando, vencer o pessimismo quanto ao futuro. Acho que os horrores, tanto os dos fanatismos da fé, como os dos cepticismos pirrónicos, acabarão por nos empurrar para a paz que a nossa religião, a do Amor de um Deus que nos fala como Pai, nos pode dar.

     
  • At 6 de maio de 2010 às 23:58, Blogger BLUESMILE said…

    Concordo com tudo o que acabou de escrever.

     
  • At 7 de maio de 2010 às 00:00, Blogger BLUESMILE said…

    Por isso mesmo, defender a laicidade cristã ( contra o integrismo católico, inclusive) é a última ratio que nos resta...

     
  • At 7 de maio de 2010 às 09:38, Blogger cbs said…

    sim Blue, a separação entre o Trono e o Altar parece-me uma defesa contra o totalitarismo e o fanatismo, porque nas questões de fé escorrega-se com muita facilidade para a intolerancia. Por isso, o melhor é a Igreja não ter poder temporal. Isso está mais que teorizado, estabelecido e aceite por Roma. E já agora, por Jesus Cristo quando enfrentou Herodes, por exemplo...
    Só não vejo que seja a ultima razão. para mim, a ultima razão de tudo, seja vida, religião ou política, é sempre amar com o Amor de Deus.

     
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