sábado, julho 18, 2009
Todos animais
Quanto aos homens penso assim: Deus põe-os à prova para mostrar que, em si mesmos, são como animais. De facto, os destinos do homem e do animal são idênticos: do mesmo modo que morrem estes, morrem também aqueles. Uns e outros têm o mesmo sopro vital, sem que o homem tenha nenhuma vantagem sobre o animal, porque tudo é fugaz. Uns e outros vão para o mesmo lugar: vêm do pó, e voltam para o pó. (Eclesiastes 3, 18-20)

Duas narrações da Criação são relatadas nos primeiros capítulos do Génesis. A mais antiga, correspondente, grosso modo, ao 2º capítulo, escrita no tempo do rei Salomão (séc. X a.C.), de tradição javista, é claramente antropocêntrica. Apresenta o homem como centro primeiro da Criação, à volta do qual tudo o mais é gerado com o propósito de o servir: a natureza como lar para o Homem, os animais como resultado da procura de um auxiliar que lhe seja semelhante, e na mesma condição a mulher, criada a partir de uma costela de Adão. A segunda narrativa, mais tardia, ligada à escola sacerdotal, foi escrita durante o exílio na Babilónia (séc. VI a.C.), e corresponde ao 1º capítulo do Génesis. Aqui não há propriamente um centro da Criação. Deus vai criando a luz, a água, o firmamento, a terra, as árvores, as estrelas, os animais, peixes, pássaros, etc., e, em cada momento, maravilha-se com a sua obra: «E Deus viu que era bom». Só ao 6º dia Deus criou o Homem, «homem e mulher os criou», em simultâneo e em paridade. Nesta segunda narrativa, é atribuída ao Homem o domínio sobre todos os seres vivos mas, ao contrário da primeira, não lhe é conferido o poder de dar o nome aos animais – esse poder que significa uma autoridade superior, uma subjugação do nomeado. Pelo contrário. O homem é um elemento, entre outros, da Criação de Deus, na qual se insere e se relaciona como entre iguais. Parece mesmo haver aqui um apelo ao vegetarianismo (Gen. 1,29), apenas derrogado depois do dilúvio (Gen. 9,3). No entanto, este assombro com a Criação, na qual o Homem se integra plena e irredutivelmente, ficou esquecido por todo o pensamento cristão até aos nossos dias. Se a autoridade de São Paulo ensina que é toda a natureza que anseia pela libertação do pecado de Adão, esperando a redenção por Cristo, pois «toda a criação tem gemido e sofrido dores de parto até agora» (Rom. 8:22), a teologia subsequente – amarrada ainda mais ao antropocentrismo da perspectiva cristã do mundo – tem-se negado a reflectir os factos incontestados da evolução do mundo que nos revelam as modernas ciências naturais. Há uma forte resistência ideológica na teologia cristã em abandonar o conceito de singularidade do homem como ponto alto da Criação (ainda que contrariado ao longo de alguns textos canónicos). Com efeito, a mudança de paradigma do judaísmo/cristianismo face aos mitos pagãos é demasiado radical para permitir um olhar neutro: onde antes o homem se integrava na natureza, agora é a natureza que se integra no universo humano. No entanto, estão visão é demasiado estreita para ser satisfatória. Basta que nos questionemos um pouco. Dizia Konrad Lorenz que «o missing link entre o macaco e o homem somos nós». Ainda que assim o não entendamos, podemos sempre perguntar-nos em que tempo histórico se deu a mudança evolutiva definitiva entre os ramos genealógicos do macaco e dos hominídeos. A questão fundamental com que S. Tomás de Aquino resolveu a questão da imortalidade dos animais em contraponto aos humanos («nos animais não encontramos qualquer aspiração à eternidade; só são eternos como espécie, na medida em que neles existe uma aspiração à reprodução, através da qual perdura a espécie», Summa contra gentiles, II, 82) ressurge com os conhecimentos científicos contemporâneos. Sabemos hoje, por exemplo, que o homem e o macaco partilham 98% do genoma. Sabemos igualmente que o homem não é produto de intervenção pontual, determinada no tempo, de um acto concreto, mas sim o resultado (ainda em evolução) de um processo que se estende no passado, ao longo de muitos milhares de anos. Podemos mesmo perguntar, ao lado de Eugen Drewermann («Da Imortalidade dos Animais – Uma Esperança às Criaturas que Sofrem»), se são apenas os homens o objecto da salvação, as únicas criaturas merecedoras da graça, da fé e da ressurreição, então desde quando existem os homens? Ora, esta errónea concepção antropocêntrica da doutrina cristã (errónea porque baseada em falsos pressupostos) tem legitimado um pecado maior contra a Criação de Deus: o desprezo por toda a natureza, a utilização cruel de todas as formas de vida e a iníqua relação com os animais, tornados produto económico sem qualquer autonomia, submetidos a sofrimentos injustificados e a tratamentos cruéis, sem respeito, sem reconhecimento da dignidade inerente à sua condição de pares da obra do mesmo Criador. Com a cumplicidade de todos nós, outros animais.
Carlos Cunha posto aqui num saudoso passado
responsabilidade do cbs
posted by @ 12:08 da manhã  
1 Comments:
  • At 20 de julho de 2009 às 23:39, Blogger Nuno Fonseca said…

    1- Sabemos igualmente que o homem não é produto de intervenção pontual, determinada no tempo, de um acto concreto, mas sim o resultado (ainda em evolução) de um processo que se estende no passado, ao longo de muitos milhares de anos.

    R: Falsa dicotomia. A pressuposição de que o homem é um resultado de causações no tempo não invalida que foi criado, num acto concreto, numa intervenção pontual, pois pode o homem ter sido criado no acto concreto e intervenção pontual do Criador através de várias causações temporais que o têm como resultado.

    2- se são apenas os homens o objecto da salvação, as únicas criaturas merecedoras da graça, da fé e da ressurreição, então desde quando existem os homens? Ora, esta errónea concepção antropocêntrica da doutrina cristã (errónea porque baseada em falsos pressupostos) tem legitimado um pecado maior contra a Criação de Deus: o desprezo por toda a natureza, a utilização cruel de todas as formas de vida e a iníqua relação com os animais, tornados produto económico sem qualquer autonomia, submetidos a sofrimentos injustificados e a tratamentos cruéis, sem respeito, sem reconhecimento da dignidade inerente à sua condição de pares da obra do mesmo Criador. Com a cumplicidade de todos nós, outros animais.

    R: A doutrina bíblica/cristã não é antropocêntrica, mas cristocêntrica. Todas as coisas foram feitas por Cristo, através de Cristo e para Cristo. Ainda assim uma dedução errada a partir duma premissa não prova o erro da premissa. Escrituristicamente, o homem é responsável pela criação, que deve dominar e servir, possuindo a terra e dominando as criaturas, segundo o mandato culturaL do Livro de Génesis. Deus, sim, castiga a tirania do homem caído, pelo que revela a sua ira contra ele na morte dos animais e na destruição da natureza, que o Senhor mostra como sendo resultados da Queda.

    ***

    Em suma, o Carlos quis provar uma conclusão certa, se biblicamente discernida: o abuso da natureza pelo homem é um pecado. Mas os argumentos não são estes. Pois não são bíblicos.

    Mas tenciono falar um dia sobre qual ecologia é a cristã, e como só esta poderá seriamente lutar contra a degeneração do ambiente.

    §

    SOLI DEO GLORIA

     
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