quarta-feira, julho 15, 2009
(...) Subitamente, como o perpassar de uma asa branca, vi-o com a cabeça triste e sozinha inclinada sobre o ombro esquerdo. Lembrei-me da sua vida, da sua solidão, dos seus espantosos distúrbios espirituais. Lembrei-me da indiferença atormentada com que assistia ao espectáculo da vida. Antes eu sentia-me ligado a ele por sentimentos complexos, em ocasiões contraditórias e tão variáveis como a sua personalidade. Naquele instante, porém, não tive a menor dúvida de que havia começado a estimá-lo entranhadamente. Acreditei ter descoberto dentro de mim essa misteriosa força que desde o primeiro instante me induziu a protegê-lo e senti na carne viva a dor do seu quartinho sufocante e escuro. Vi-o sombrio e derrotado, sufocado pelas circunstâncias. E, de repente, a um novo relance dos seus olhos, amarelos, duros e penetrantes, tive a certeza de que o segredo da sua labiríntica solidão havia sido revelado pela tensa pulsação da noite. Antes que eu próprio tivesse tido tempo de pensar porque o fazia, perguntei-lhe:
— Diga-me uma coisa, doutor: o senhor acredita em Deus?
Ele olhou-me. O cabelo caía-lhe sobre a testa e todo ele ardia numa espécie de sufocação interior, embora o seu semblante ainda não mostrasse nenhuma sombra de emoção ou embaraço. Disse, com a sua parcimoniosa voz de ruminante, inteiramente recobrada:
— É a primeira vez que alguém me faz essa pergunta.
— E o senhor, doutor, já a fez a si mesmo alguma vez?
Não pareceu indiferente nem preocupado, apenas interessado na minha pessoa. Nem ao menos na minha pergunta e muito menos na intenção dela.
— É difícil saber — disse.
— Mas uma noite como esta não lhe causa medo? Não tem a sensação de que existe um homem maior que todos os outros a caminhar pelas plantações enquanto nada se move e todas as coisas parecem perplexas ante a passagem desse homem?
Agora ele ficou silencioso. Os grilos enchiam o ambiente, mas cantavam além do morno, vivo e quase humano odor que vinha do jasmineiro plantado em memória da minha primeira esposa. Um homem sem tamanho caminhava, sozinho, dentro da noite.
— Não creio que nada disso me perturbe, coronel. — E ele agora parecia perplexo, também ele, como as coisas, como o alecrim e o nardo no seu ardente lugar. «O que me perturba», disse, e ficou a olhar-me nos olhos, concretamente, com dureza: «O que me perturba é o facto de existir pessoa como o senhor capaz de afirmar com segurança que sente esse homem a caminhar na noite.»
— Procuramos salvar a alma, doutor. Essa é a diferença.
E então fui além do que me propunha. Disse: «O senhor não o ouve porque é ateu.» E ele, sereno, imperturbável:
— Pode acreditar, coronel, não sou ateu. O que acontece é que me perturba tanto pensar que Deus existe como pensar que não existe. Então prefiro não pensar nisso.
Não sei porquê, mas tive o pressentimento de que era exactamente isso o que ele me ia responder. «É um perturbado de Deus», pensei, ouvindo o que ele acabava de me dizer espontaneamente, com clareza, com precisão, como se o tivesse lido num livro. Eu continuava embriagado pelo torpor da noite. Sentia-me mergulhado no coração de uma imensa galeria de imagens proféticas.
(...)

(Gabriel García Márquez, in O enterro do diabo [título original: La Hojarasca], tradução de J. S., Publicações Europa-América, 1972)


(escolha de) Rui Almeida
posted by @ 6:41 da tarde  
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