sexta-feira, maio 15, 2009
O riso do Sarnento
"Na origem, o riso é (...) do domínio do diabo. Tem algo de maléfico (as coisas revelam-se de repente diferentes daquilo por que se faziam passar) mas também tem em si uma parte de alívio benfazejo (as coisas são mais leves do que pareciam, deixam-nos viver mais livremente, cessam de nos oprimir sob a sua séria austeridade).

Quando o anjo ouviu pela primeira vez o riso do Astucioso, foi tocado pela admiração. Passava-se o caso durante um festim, a sala estava cheia de gente e as pessoas foram acometidas, uma após outra, pelo riso do diabo, que é horrivelmente contagioso. O anjo percebeu claramente que aquele riso era dirigido contra Deus e contra a dignidade da sua obra. Sabia que devia reagir depressa, de uma forma ou outra, mas sentia-se fraco e indefeso. Como não era capaz de inventar nada sozinho, macaqueou o adversário. Abrindo a boca, emitiu sons entrecortados, sacudidos, com intervalos superiores aos do seu registo vocal (...), mas dando-lhe um sentido oposto. Enquanto o riso do diabo designava o absurdo das coisas, o anjo queria, pelo contrário, regozijar-se com o facto de tudo aqui em baixo estar bem ordenado, sabiamente concebido, ser bom e pleno de sentido.

Assim, o anjo e o diabo estavam face a face, e, mostrando as bocas abertas, emitiam quase os mesmos sons, mas cada um exprimia pelo seu clamor coisas absolutamente contrárias. E o diabo olhava para o anjo que ria, e ria-se ainda mais, tanto melhor e tanto mais francamente quanto o anjo que ria era infinitamente cómico."

"O Livro do Riso e do Esquecimento", Milan Kundera, (Publicações Dom Quixote, tradução de Tereza Coelho, pags. 65 e 66)

timshel
posted by @ 6:51 da tarde  
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home
 
 
Um blogue de protestantes e católicos.
Já escrito
Arquivos
Links
© 2006 your copyright here