segunda-feira, junho 23, 2008
Fazei o mar deflagrar nos rios, e não esboroar as suas margens 3
- O problema da comunhão, disse Hervé, acabado de chegar e sentar e acesso o cigarro, o chá pedido e enublado, é que a confirmação é da ordem do indemonstrável, do mundo nunca visto nem visível nos interstícios da terra onde vivemos e sufocamos. Aquele que não tem nome exprime-se, sim, mas no incomunicável, fora de todas as regras possíveis, absolutamente fora, a confirmação do divino, a sua presença em e para nós, é única e propriamente expressa – no milagre, disse Hervé cheirando o chá e sorvendo-o soprando.

- E essa malta dos evangelhos re-exprime-o até adequadamente, à papo seco, continuou Hervé, nem se percebe muito bem o que acontece, claro, e nessa incompreensão dá-se o reconhecimento, o denso reconhecimento da voz do deus a chamar-nos. Estás a ver? Igreja é isto, a comunhão nisto, o resto é contratualidade e confusão, o resto é o mundo, e ambos vão, Igreja e mundo, mutuamente contaminando-se, o fermento e o pão, o trigo e o joio, e desesperado daquele que pretende na terra separá-los, sequer distingui-los, tudo isso são conversas de comadres assustadas, a fugir esbaforidas, e isto também é Igreja mas isso seria outra conversa.

- Foda-se, Hervé, disse ele bufando e sorrindo, num minuto consegues logo cansar um batalhão, e acendeu um cigarro, pediu outro café, já era o quarto do dia, se calhar tenho que diminuir nos café, pensou.

- Sim, é melhor estar-se nas tintas para essas questões, disse Hervé, é melhor.

- Não foi bem isso que eu quis dizer.

- É preciso atentar ao ritmo de si, das ideias e das coisas, e saber travar, embraiar, guinar o volante, cuidar da gasolina, do motor, disse Hervé, é preciso quero dizer para ser cristão. E riu, o Hervé, olhando o rio, O que eu quero dizer é que, de certa maneira, antes de falar já falámos demais, e é aí que se dá, ou não, a comunhão. Sei lá o que quero dizer! e ria, o Hervé, cada vez mais, e ele ria com o Hervé, o rio olhava para ele e ele ria, gostava de o ouvir, ao Hervé, gostava de ouvir o seu simulacro de cinismo, a sua esperança e lucidez cega.

- À tua, Hervé, disse ele embatendo a sua chávena na de Hervé, Seja o que fôr que um brinde de chá e café signifique.

- Prosit, disse Hervé, que signifique Igreja ou está tudo fodido.

E riram, ainda mais.

- Que se foda o ecumenismo, essa é que é essa, disse Hervé, se nos pusermos a atentar nas diferenças vivas ainda acabamos por apercebermo-nos que cada qual tem a sua metamorfose cristã, o seu pedaço irredutivelmente singular, a sua pequena e absoluta, pessoal, funda e fundamental – relação com o criador, com a vida também, somos irredutivelmente nós mesmos. A comunhão tem sempre um fundo de abraço cego (sim, aí a referida lucidez) e de confiança bruta que esse fundo esteja em Deus, com Deus, por Deus, e nada mais (por aí, a lucidez).

- É um pouco doido, isso tudo, riu-se ele.

- Exactamente, disse Hervé, e não riu. O amor de Cristo nos reuniu, e nada mais.

- Confessar-se pecador.

- Sem mais. Afastado de Deus, e abraçado por Ele. Isto já parece uma peça de teatro daquelas de maçada intelectual! e voltou a rir, o Hervé, desta vez riu, não se aguenta muito tempo na consciência do pecado, que é a primeira coisa que sucede ao pormo-nos perante Deus, a primeiríssima coisa, ou pelo menos ali não se aguentou, neles, Hervé com os seus cinquenta e tal anos de desencanto e convicção, e ele com os seus vinte e poucos de confusão e decisões; não se aguentou muito, ali com o chapinhar da água e os cordames rangendo, geralmente fica-se em terra e ali ficaram rindo e de vez em quando suspeitando, estremecendo, algures pensando e sentindo e clamando pela incarnação, Vinde senhor Jesus era o que diziam calando e doutros assuntos conversando ou nem por isso, faça-se o milagre do pão e do vinho, do chá e do café, do sangue e da alma, do eu e do outro faça-se.

- Cristo é a vinda concreta e completa a ser-se humano, e assim Tudo o que fizeres a alguém, é a Mim que o fazes. O outro torna-se um absoluto, isto para nós é uma total estapafurdice, claro, a nossa disposição uns perante os outros ser a de ajoelharmo-nos e lavar os seus pés, entregarmos a vida ao outro, toda.

- Sim, a Igreja, como que suspirou por entre os dentes, ele, o outro, e interrogava-se se ele e Hervé estariam nesse soçobro de amor um perante o outro, naquele momento um com o outro e com as restantes pessoas ali em redor, o empregado de mesa, os clientes, a marabunta de pessoas ribombando na cidade do outro lado do rio, haveria um limite de anelo?

- O Escrivá, disse Hervé, numa ida ao México em 1970, ao entrar num centro da secção feminina, uma camponesa índia ajoelhou-se de encontro a ele para beijar-lhe os pés e ele de imediato ajoelhando-se com ela Isso não, minha filha, isso não, somos iguais, somos filhos de Deus, com a diferença de que não sou senão um pobre pecador, por quem é preciso rezar muito.

Um arrepio percorreu a nuca dele, do outro, algo de sentimental mas mesmo assim, um pequeno extâse de emoção e nervo, anseio, como se tal união em violência de comunhão fosse algo que ele reconhecesse com intenso desejo sem saber muito claramente a que corresponderia, o que seria ser e fazer isso, como se fosse possível, ou melhor dito: impossível e desconhecido, e no entanto exigido no máximo desejo. Deus ele mesmo, ou isso ou a morte, é evidente, pensou ou disse, para onde o coração desagua e a mente e os dias se põem ao serviço

- Dá ideia que tinha percebido a coisa, o homem, rematou Hervé rindo, que o beijo da paz é um mútuo encontro no soçobro. E a verdade é que não podemos saber se alguma vez alguém teve ou não um momento de real e verdadeira comunhão, para além de Cristo, claro, não podemos saber.

Calaram-se, e de alguma maneira estavam rezando na tarde, rezando um com o outro ou querendo que assim fosse, cada um à sua maneira, à sua maneira viva.

Igreja é algo assim, é difícil, pensou Hervé, pensaram ambos, aliás. É impensável, sentiram ambos, no fundo de si sentiram. É mesmo preciso haver um deus acrescente-se sem saber se um ou outro ou ambos o sentiram ou pensaram; oxalá, digamos assim, oxalá também agora connosco e com seja quem fôr e onde estiver; oxalá.

(O ideal concreto – seria ter fé.)

Vítor Mácula
posted by @ 12:21 da tarde  
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