quarta-feira, junho 11, 2008
A conversão de Agostinho, narrada pelo próprio
«Indaguei as profundezas ocultas da minha alma, arranquei os seus piedosos segredos e, quando os tive todos juntos diante dos olhos do meu coração, eclodiu em mim uma grande tempestade que provocou um dilúvio de lágrimas… Com efeito senti que era ainda escravo dos meus pecados e na minha miséria não cessei de repetir entre gemidos: “Até quando continuarei a dizer: amanhã, manhã? Porque não agora? Porque não acabar neste momento com os meus horríveis pecados?”.
Estava eu a fazer-me estas perguntas e chorava com a mais viva dor no meu coração, quando senti de repente uma voz infantil numa casa próxima. Não seria capaz de dizer se era voz de menino ou de menina: sei, no entanto, que continuava a repetir o refrão: “Toma e lê! Toma e lê!”. Olhei em volta e pus-me pensar se haveria algum jogo em que as crianças repetissem estas palavras, mas não me lembrava de alguma vez tê-las ouvido antes. Enxuguei as lágrimas e levantei-me a dizer que só podia ser Deus que me ordenava que abrisse o livro das Escrituras e ler a primeira passagem que surgisse aos meus olhos. De facto, eu já tinha ouvido dizer que Antão tinha entrado numa igreja enquanto se lia o Evangelho e tinha pensado que se dirigiam a ele pessoalmente as palavras que ouviu ler: “Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres; depois, vem e segue-me!”. Esta mensagem divina tinha-o convertido imediatamente.
Apressei-me então a voltar para onde Alípio estava sentado, porque, quando me levantara para me ir embora, tinha deixado ali o livro das cartas de Paulo. Peguei nele, abri-o e li as primeiras palavras que me surgiram diante dos olhos: “Não nas orgias nem na embriaguez, na imoralidade ou na lascívia, não nas contendas ou ciúmes, pegai antes nas armas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não queirais contentar a vossa natureza pecadora nem satisfazer os seus desejos”.
Não quis ler mais, nem tive, aliás, necessidade. Num instante, tendo chegado ao fim da frase, foi como se a luz da fé tivesse inundado o coração, fazendo desaparecer todas as trevas da dúvida».

AGOSTINHO, Confissões VIII, 12

Pedro Leal
posted by @ 11:41 da tarde  
4 Comments:
  • At 12 de junho de 2008 às 14:51, Blogger Vítor Mácula said…

    É belíssimo e de máxima interpelação, como acontece quase sempre com o mano Agostinho ;)

    Mas queres dizer que tal deflagre de revelação, tomada de consciência, contrição e conversão... só pode ocorrer por estímulo de textos canónicos?

    O Petrarca pretende que tal lhe aconteceu... por leituras do Agostinho ;)

     
  • At 13 de junho de 2008 às 14:13, Blogger cbs said…

    Esta situação de iluminação divina é um clássico. Com riscos, pois os carismáticos, os que recebem uma visão transcendente, também lhes dá muito para o disparate. O guia interior, que acredito ser o dom Espirito Santo, é o que se opõe ao disparate.

    Mas, como o Vitor apontou, não creio que os textos do Livro sejam a única via para a tomada de consciencia de Deus. Há muitos que despertam, sem conhecerem os textos, apartir do ateísmo.
    Já, para aprofundar a Fé, aí sim, não se poderá prescindir do Livro.

     
  • At 14 de junho de 2008 às 00:32, Blogger Pedro Leal said…

    Creio que a conversão chega pela pregação da Palavra. Isto não quer dizer que tenha de ser a citação ou a leitura directa das Escrituras. Quanto aos riscos, de que fala o cbs, eles só acontecem se a "iluminação" não for divina...

     
  • At 14 de junho de 2008 às 01:56, Blogger cbs said…

    Sim Pedro, só derrapamos no disparate quando o Espirito Santo não nos "ilumina". Foi isso que disse.

     
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