segunda-feira, novembro 19, 2007
Humildade e Fé IV
Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se o orgulho habitar em mim serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montanhas, se o orgulho habitar em mim nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se o orgulho habitar em mim nada disso me aproveitará.
O orgulho é paciente, é insidioso e maligno. O orgulho arde sem doer, por tudo se ufana, por tudo se ensoberbece. O orgulho só conduz a si mesmo, só procura os seus interesses, não se exaspera mas espera. O orgulho não se ressente nem do mal nem do bem, não se alegra com a injustiça nem com a justiça. O orgulho regozija-se com a verdade e, mais ainda, com a mentira. Em nome do orgulho tudo se sofre, em tudo se crê, tudo se espera, tudo se suporta.
Ainda que em nós permaneçam a Fé, a Esperança e o Amor, sendo que o Amor é o maior destes três, todos eles, mesmo o Amor, podem soçobrar pelo peso do Orgulho, que de tudo se alimenta e que a todos nós alimenta, podendo assim encher o nosso coração, esvaziando-o de tudo o resto. E assim sendo, no fim de tudo, depois de tudo ter sido apagado pela força do Orgulho, é ele que permanece em nós, no vazio imenso em que nos tornámos.

Perdoar-me-ão certamente esta apócrifa adaptação do belíssimo e célebre trecho da 1ª Carta de S.Paulo aos Coríntios, mas desde que cheguei à Fé que hoje tenho, tal como Paulo desde a estrada de Damasco, também eu sinto permanentemente em mim e permanentemente receio em mim algo como o «espinho na carne» de que ele se queixava. Só que, sendo eu um simples pecador e não um apóstolo como Paulo, esse espinho não é «algo que lhe foi dado a fim de que não se orgulhasse» (2 Cor 12, 2-10). Não, a mim esse espinho que me fere ferindo a crença que tenho no valor da minha Fé, é precisamente o orgulho, esse que penso ser o pecado original, o pai de todos os pecados, o pai de todo o mal.
Já uma vez falei no Guia de algo que me afige, o meu orgulho de crente: um imenso e absurdo orgulho, um orgulho de ter Fé, um orgulho de pressentir e julgar discernir Deus, um orgulho de me achar um justo, tal como Job achou ser, um orgulho de ser humilde, um orgulho de ser manso, um orgulho de ser desprendido. Este é um orgulho insidioso que já existia antes de existir a minha fé e que, tendo ela chegado, foi dela alimentar-se, foi encontrar nela razões para se gloriar. É de tal modo insidioso este orgulho que se exalta por ser reconhecido e exulta por querer ser combatido.
Uma belo dia, ao ler S.Paulo (sempre este homem fatal) a dizer que «tudo nos é permitido mas nem tudo nos convém», tive finalmente a terrível percepção de que esta fé que eu tenho é para mim essencialmente algo que me convém, que me ajuda a viver, que me dá sentido à vida e ao sofrimento, que consola o meu coração e satisfaz a minha inteligência. A minha fé alimenta-me e aperfeiçoa-me mas não me consome. É um bem em si mesmo, quase só para mim, eu que sou habitat de tão grande orgulho.
Não se pense que isto são pruridos de homem excessivamente escrupuloso. Isto é uma dôr de alguém que receia por si próprio. E que lamenta a sua esterilidade. Porque, como também disse S.Paulo aos inefáveis Coríntios, «agora vemos como em espelho, obscuramente, e então veremos face a face; agora conheço em parte e então conhecerei como sou conhecido».

josé
posted by @ 12:33 da tarde  
6 Comments:
  • At 19 de novembro de 2007 às 13:50, Blogger Luís Sá said…

    "A minha fé alimenta-me e aperfeiçoa-me mas não me consome. É um bem em si mesmo, quase só para mim, eu que sou habitat de tão grande orgulho."

    "secretum meum mihi" dizia uma grande mulher, reputada filósofa e eminente asanta quando lhe pediam que narrasse a sua história de conversão ao cristianismo. No fundo nunca passa muito daqui (para mim foi claramente isto), o assumir que sózinhos não somos capazes. Escravatura dizem os ateus. Sim, será escravatura, se realmente formos capazes de imprimir um sentido às nossas vidas, de amar e de nos realizarmos sem Deus. Então aí o cristianismo é uma religião de escravos (e aí concordo com o cbs, Nietzsche era genial e levou a "morte de Deus" às suas verdadeiras consequências e propôs aquilo que seria uma libertação segundo a sua visão, um verdadeiro profeta de um mundo sem Deus... daí talvez Nietzsche escrever livros de estilo literário tão próximo do religioso) que oprime e tenta manter a ilusão de que é necessária uma divindade para nos completarmos.

    Mas se realmente for necessário, se realmente o Homem sozinho não for a lado nenhum, se formos realmente fraquinhos e pobrezinhos, então não vejo alternativa senão em Deus. O que torna a coisa interessante, pois isto torna a visão ateia muito mais lírica do que a cristã acerca da humanidade, apesar das críticas que os ateus costumam fazer aos cristãos sobre as suas crenças fantasiosas. Crer na capacidade da humanidade de se salvar e orientar sozinha é que me parece a suprema fantasia, o supremo lirismo.

    Cada um deverá fazer o exame e no fundo é isto. Se somos capazes sózinhos ou não. E haja em conformidade. É que na maior parte das vezes nem isso fazemos. Vivemos no limbo da indiferença mais medíocre.

     
  • At 19 de novembro de 2007 às 13:51, Blogger Luís Sá said…

    asanta= santa
    haja = aja

     
  • At 19 de novembro de 2007 às 15:52, Blogger Scott said…

    Aproveitando a boleia do tiago no seu poste sobre Chesterton...

    Um revista propôs o seguinte tema a vários autores: "O que está mal com o mundo?" a qual Chesterton respondeu:

    Caros Senhors,
    Sou eu.
    Sinceremente,
    G.K. Chesterton
    (ver wikipédia G K Chesterton)

    E se tivéssemos todos esta atitude?

     
  • At 19 de novembro de 2007 às 15:55, Blogger Scott said…

    Perdoem a dactilografia...

     
  • At 19 de novembro de 2007 às 22:54, Blogger cbs said…

    Scott
    aqui sou tão arrogante como Chesterton. O que está mal com o mundo?
    Sou eu. Sinceremente

    Antonius
    Nietzsche era genial e consequente, o que não é o que se passa com a maioria dos nietzscheanos de trazer por casa. Se fossem como ele, acabariam como ele.
    E mantenho a ideia, se Nietzsche não tivesse enlouquecido, se tivesse podido levar a sua reflexão mais longe, não me admiraria que regressasse ao Deus da sua infancia (foi educado por pais protestantes).
    Assim apenas ficou uma doutrina maldita, que tanto mal tem gerado. É um dos filósofos que derramou a "suspeita" sobre Deus, um dos trágicos "pais do século" passado.

    Mas admiro-o pela coerencia e pelo génio.

     
  • At 19 de novembro de 2007 às 23:27, Blogger cbs said…

    José
    "O orgulho (...) não se exaspera mas espera."
    sou assim, tal e qual

    eu falar de humildade, não me faz nada humilde.
    Gostava de o ser verdadeiramente, vejo nela a maior virtude e no orgulho o maior pecado como dizes;
    o pecado de Nietzsche e da ciencia moderna quando se torna ateia e materialista.
    O pecado original de que falava o Tiago Oliveira: "A base da fé cristã assenta na «miserabilidade» do Homem sem Deus.
    O pecado original é o «endeusamento» que o Homem faz de si próprio.
    A declaração da sua auto-suficiência."

    É só isto... e vê-se bem como o demo esperneia, lol

     
Enviar um comentário
<< Home
 
 
Um blogue de protestantes e católicos.
Já escrito
Arquivos
Links
© 2006 your copyright here