Caro Miguel,
Não é meu hábito fazer afirmações que não possa fundamentar minimamente, especialmente quando estas dizem respeito à Igreja católica.
Em primeiro lugar é preciso começar por dizer que falar de democracia numa igreja é em si tão pertinente como falar de democracia numa empresa ou de democracia numa associação qualquer. É completamente absurdo falar da igreja como se nela estivesse contida toda a sociedade, como se na igreja existisse uma monarquia ou uma democracia tal como existe nos sistemas políticos dos respectivos países.
É que não é dentro da igreja que se luta por melhores condições de trabalho, ou por um melhor sistema de saúde, ou por poder livremente discutir ideias. Não é dentro da igreja que se faz greves ou manifestações, que se roubam pessoas ou que estas vão para a prisão. A igreja não regula o sistema judicial, nem o legislativo, nem o executivo. Ser o Bento XVI o Papa ou o António Borges não tem nenhum impacto na minha vida para além de mudanças doutrinais com as quais eu posso concordar ou não (mas que acataria de qualquer forma), mas que nada têm que ver com a minha vida em termos de bem-estar material ou de liberdades e garantias. As mulheres serem ordenadas ou não não altera nada na minha vida nem altera nada nas vidas das mulheres para além de passar a haver algumas a poderem dizer umas coisas nos púlpitos (que grande parte das pessoas já ninguém ouve) ou a celebrar sacramentos. Não me torna nem mais rico nem mais pobre.
É por isso absurdo querer transportar um sistema democrático que governa uma sociedade como um todo para a igreja. É que a grande virtude do sistema democrático é que gere as diferentes aspirações das populações de forma mais ou menos equilibrada. Aspirações muito concretas de uma vida melhor. Transportar isso para a igreja significa que o que se pretenderia gerir seriam visões ideológicas ou doutrinais opostas. E aí caros amigos, temos um exemplo muito claro do que acontece nessas situações. Completa e total fragmentação. É o caso protestante, em que as igrejas se vão sucessivamente fragmentando (tal e qual como partidos) quando novas personalidades surgem capaz de mobilizar algumas pessoas dentro de uma comunidade. "Dar o poder às bases" dá invariavelmente nisso, o que para os protestantes não tem problema porque têm uma visão eclesiológica completamente diferente, em que não têm problema com a pluralidade.
Não é o caso católico. Destruam a unidade da Igreja Católica e destroiem a sucessão apostólica e já nada destinguirá a Igreja Católica de uma igreja protestante (ou várias que é o que resultaria de dar o poder às bases). É que a Igreja Católica no Chile nada tem que ver com a portuguesa, ou esta última com a americana, ou com a alemã, ou com a chinesa. Dar o poder às bases implica a fragmentação, isto é um dado mais que adquirido (os protestantes sabem-no).
E ainda há mais. Para a Igreja Católica, como para a Ortodoxa, a Tradição tem um papel fundamental em termos doutrinais. Ao contrário das doutrinas protestantes, isto torna necessário a existência de uma camada de fieis especializada no conhecimento da mesma, que possa ser garante da manutenção desta mesma Tradição. Na Igreja Católica não se pode pura e simplesmente afirmar todo e qualquer postulado teológico sem ir aos 2000 anos de história analisar se este faria sentido ou não. E os bispos são a garantia viva da manutenção desta Tradição, é esse o seu Magistério e é essa a sua responsabilidade. Não se pode querer que outras pessoas tenham poder decisório sem serem ao mesmo tempo incumbidos desta responsabilidade, porque correríamos o risco de daí poder sair todo e qualquer disparate (como sai nas igrejas protestantes). E os bispos têm esta responsabilidade de forma quase sensitiva, porque foram ordenados em sucessão apostólica e portanto têm uma relação directa com os apóstolos.
Isto não quer dizer que os leigos não possam contribuir para o aprofundamento dos conteúdos da fé. Mas caro Miguel, quando é que isso não aconteceu? Leigos, mulheres e homens, sempre deram esse fundamental contributo. Desde Hildegard von Bingen e Catarina de Sena até a von Hildebrand passando por S. Francisco de Assis (é preciso não esquecer que este era um leigo e foi-o sempre até ao fim da vida) os exemplos são mais que muitos. Fizeram-no frequentemente e muitas vezes obrigando a hierarquia a reformular-se interiormente. Mas fizeram-no segundo o Evangelho, fizeram-no com humildade e fizeram-no começando por se reformar a si mesmos e dando o exemplo. E esssa possibilidade nunca nos foi negada. Simplesmente é mais fácil querer ir pelo caminho decisório directo.
Isto nada tem que ver com o mandamento do Amor tim. O que incomoda as pessoas é não terem poder decisório, algo de completamente contrário ao Evangelho que prega a humildade (e humildade não só para com os nossos contemporâneos como para com os que nos antecederam, e daí a importância da Tradição). Explica-me lá em que é que eu poder ter um papel na decisão da doutrina católica é "um acto de amor" para comigo? Em que raio é que o Amor se manifesta em qualquer um dos postulados que o AB enunciou? O que é que o igualitarismo redistributivo e social que defendes para a sociedade tem que ver com as instâncias de poder dentro da igreja?
Antonius Block |
"Isto nada tem que ver com o mandamento do Amor tim. O que incomoda as pessoas é não terem poder decisório, algo de completamente contrário ao Evangelho que prega a humildade (e humildade não só para com os nossos contemporâneos como para com os que nos antecederam, e daí a importância da Tradição). Explica-me lá em que é que eu poder ter um papel na decisão da doutrina católica é "um acto de amor" para comigo? Em que raio é que o Amor se manifesta em qualquer um dos postulados que o AB enunciou? O que é que o igualitarismo redistributivo e social que defendes para a sociedade tem que ver com as instâncias de poder dentro da igreja?"
existem dois níveis que convém não confundir
o da igreja e o do mundo
a igreja, enquanto depositùaria da fé não pode nem deve submeter-se às regras democráticas de modo absoluto (embora existam regras democráticas dentro da igreja - por exemplo a eleição do Papa é de cariz democrático - e seja porventura desejável que, sem perturbarem a essência e a clareza da mensagem cristã, se alarguem e aprofundem essas regras)
mas, mesmo no que respeita ao mundo, a democracia não é o valor absoluto (imaginemos um caso em que os direitos humanso fundamentais fossem espezinhados por uma maioria expressa em democracia)
é sempre um problema de proporcionalidade e de equilíbrio que se traduz de modo diferente (tendo em conta os seus objectivos) na igreja e no mundo
é verdade que na igreja o valor da humildade e da obediência tem um peso específico próprio diferente do que tem e deve ter na sociedade laica
e, por isso mesmo, devem existir hierarquias e autoridades na fé
desde o princípio desta "polémica" que afirmei essa necessidade
o equilíbrio de direitos individuais e redistribuição de recursos que considero a expressão política do cristianismo não é nem poderia ser dada a difença e de objectivos e de funções as mesmas que existem na igreja e na sociedade
quanto à "Tradição"
não sei o que isso é
ao longo da história da Igreja existiu sempre uma evolução
umas coisas boas foram aproveitadas e outras menso boas foram consideradas como erros ou como expressões menos adequadas da mensagem cristã
suponho que isso continue a acontecer
se isso for "Tradição" então eu também sou tradicionalista