segunda-feira, março 26, 2007
Caro Pedro Leal,
Só agora me permito responder à tua interpelação. Faço-o sob a forma de post, à boa maneira evangélica.

Começo por dizer que a tira do Laerte não é uma representação do divino. É precisamente o contrário. É uma sátira sobre a representação do divino. Pretende figurar uma visão (por natureza redutora) que se tem sobre o divino. Repara: estão lá as barbas brancas, o triângulo e o olho da omnisciência, e a acção passa-se num céu de nuvens. É assim que muita gente – inclusive das nossas Igrejas – vê Deus Pai. Esta expressão da representação do divino, ao dessacralizá-la (à representação, não ao divino) presta um maior serviço a quem, como qualquer crente, sabe que Deus é irrepresentável e que qualquer aproximação humana ficará aquém da Sua realidade (misteriosa para nós, na plenitude da palavra).

Po outro lado, o problema da proibição das representações de Deus prende-se com a impossibilidade da identificação do significado e do significante (lembramo-nos que o bezerro de oiro era adorado como um deus, precisamente por ser percepcionado como sendo deus). Nada disto se passa nesta bd do Laerte. Nós sabemos que não é Deus que está ali. No mesmo plano se colocam as outras representações – desde a da Capela Sistina à imagem da Virgem Maria de Fátima, passando pela iconografia popular da Igreja Católica. Nós (os católicos e os outros) sabemos que Deus não está nem é (n)a figura que o representa. Inventamos-lhe uma imagem, bem sabendo que Ele é irredutível ao nosso mundo sensorial. Como o é ao nosso mundo intelectual ou espiritual (por mais brilhantes teólogos ou fervorosos místicos que sejamos).
O mesmo se passa com as fotografias dos filhos que os pais guardam nas carteiras e que mostram aos amigos dizendo “este é o meu filho”. Todos sabemos que a imagem não é o filho, nem que o “representa”. É uma simplificação (blasfema?) de uma realidade maior e irrepresentável.

Ora, do mesmo modo, o ser-Deus não é redutível à palavra humana. Podemos aproximarmo-nos d’Ele, mas ficaremos sempre aquém da infinitude. Daí que mesmo as características que tu lhe apontas (“santo, amoroso, omnisciente e todo-poderoso”) são, além de discutíveis, parcelas de uma realidade que não conseguimos antever e, portanto, descrever. São também uma caricatura. Uma caricatura escrita, mas uma caricatura que se enuncia com as palavras grosseiras que temos para exprimir o indizível. Será blasfémia? Creio que não. É o nosso modo humano de pensar o sobrenatural.

O que se aproxima da blasfémia é a idolatria feita através de imagens ou de palavras, quando se exige uma coincidência entre a imagem ou a palavra com o que ela se esforça por representar. Neste sentido tanto é um desvio (teológico, digamos) sacralizar uma imagem, confundido-a com o que ela pretende simbolizar, como a sacralização da palavra, elevada à vontade inequívoca, definitiva e absoluta da condição divina. Como reclamar da Bíblia o depósito de toda a verdade de Deus. Como se Deus coubesse na Bíblia, como se o mundo se reduzisse à Bíblia, como se a Bíblia sequestrasse o humano. Na tua perspectiva, não será isso também uma caricatura, uma blasfémia? Eu penso que não.

Carlos Cunha
posted by @ 3:02 da tarde  
11 Comments:
  • At 26 de março de 2007 às 16:24, Blogger zazie said…

    Está excelente, parabéns.

    O malandro do Tim é que não aparece. E eu sei que ele tem consistência teórica para o que disse.

    Tentei provocá-lo mas foi em vão.

    Mas ter consistência tem, ainda que muito hegeliana e nada pragmática.
    É claro que a ética prescinde do adereço. A questão é que não é de ética interior que se está a falar. E depois, se há música, também há imagem. Ele não consegue sustentar a bondade de uma sem ter de aceitar a outra.

    Esse foi outro problema teórico medieval.
    ehehe

     
  • At 26 de março de 2007 às 19:52, Blogger timshel said…

    zazie

    lisonjeias-me mas sobrevalorizas-me

    não sou o teu alter-ego :)

    sobretudo sobrevalorizas as minhas intenções

    eu sou um medíocre artista de circo

    (espera pelo próximo post no timshel eh eh)

     
  • At 26 de março de 2007 às 20:16, Blogger zazie said…

    ahahahahaha

    macacão! por acaso tens um tipo de inteligência que eu gostava de ter. Não sei como descobriste.

    É aquele simplicidade directa dos homens que não são de letras
    ahahaha

    E tenho a mania que não hás-de ser "homem de letras".
    Mas não tomes a expressão à letra que é uma private joke cá de casa

    ":O)))))

     
  • At 26 de março de 2007 às 20:17, Blogger zazie said…

    é muito macaco este rapaz, graças a Deus

    ":O))))

     
  • At 27 de março de 2007 às 13:32, Anonymous Anónimo said…

    No meu comentário defini dois níveis. A tentativa de representação, que corre o risco de ficar muito aquém da realidade, e assim “desprestigiar” Deus. E a caricatura, que entra, por opção e definição, em contradição directa com a perfeição divina. Blasfémia, portanto. A lógica sinuosa de “o divino é irrepresentável logo não há problema em representá-lo, e pode até ser salutar representá-lo porque alerta os que o tentam representar para a sua irrepresentabilidade” , esta lógica, que tenta justificar os meios com os fins, também não convence.
    Julgo que as palavras, por conseguirem enunciar realidades que estão para além da nossa capacidade de compreensão (alguém consegue entender o que é infinito, eterno, Criador do Universo?) e apontarem para conceitos (bom, justo, misericordioso), as palavras servem melhor para tratar com o divino.
    Quanto à Bíblia, vejo-a apenas como a revelação de Deus aos homens. Deus é muito maior que ela, como é óbvio. Se há outras revelações? Se Cristo não as mencionou, pelo contrário se apresentou como único caminho (João 14:6), não acho que valha a pena perder muito tempo com o assunto.

    Pedro Leal

     
  • At 27 de março de 2007 às 16:21, Blogger Marco Oliveira said…

    "Se Cristo não as mencionou [outras revelações], pelo contrário se apresentou como único caminho."

    Mas que outros caminhos havia no tempo de Cristo?
    E que outros caminhos havia no tempo de Moisés?
    E no tempo de Abraão?

    Não será isso uma descontextualização de uma frase atribuída a Cristo que serve de base a um princípio questionável.

    Porque se se acredita que não há outras revelações, então podemos questionar a omnipotência e a justiça de Deus. Será que Ele é incapaz de enviar novas revelações? Estará de mãos atadas? E porque é que Ele preferiu revelar-Se apenas uma época e apenas a um povo? Poderá o Pai justo ter preferência por alguns dos Seus filhos? Poderá calar-Se a abandoná-los, não lhes enviando qualquer outra revelação?

    Eu não questiono a condição divina de Jesus Cristo; apenas a exclusividade que uma boa parte dos cristãos lhe atribuem.

     
  • At 27 de março de 2007 às 18:04, Blogger Luís Sá said…

    Caro Pedro,

    Até que ponto não é arbitrária a diferenciação que estabeleces entre "palavras" e "imagens"? Numa primeira abordagem, "Infinito" remete-me para o conceito matemático, "eterno" para o Manoel de Oliveira, "Criador do Universo" para um qualquer filme sci-fi dos US. Não vejo onde possa estar a substancial diferença em capacidade de remeter para o irrepresentável (não venha lá o Wittgenstein dizer que é precisamente esse o nosso problema). Antes pelo contrário, as palavras evocam sempre uma realidade interior, um vocabulário interno limitado pelas experiências de cada um. São as imagens que remetem para realidades transcendentes. É curioso de notar até que os esforços mais conseguidos de retratar o irretratável por meio da Palavra são normalmente alcançados por intermédio da linguagem poética, precisamente aquela que mais dá azo ao uso de imagens, aquela que tenta tornar corpóreo

    Além do mais, de bíblico essa concepção tem muito pouco. Nos grandes momentos de revelação, não é costume divino enviar uma missiva com o inconfundível selo de Sua Majestade. Antes pelo contrário, é nos sonhos, na sarça ardente, na leve aragem, até nos milagres de Jesus "porque somos duros de coração", que Deus escolhe revelar-se.

    Claro que Deus é inapreensível, mas é preciso não esquecer que foi Ele que se quis revelar, e que para tal escolheu não só a sua Palavra, mas todo o tipo de sinais, e toda a Sua criação que para Ele remete. E por que fez Ele isso? A tentação de curto-circuitar a Revelação é grande. Abaixo os símbolos, abaixo a meta-linguagem, eu cá vejo Deus directamente e concebo o inapreensível! Se nos limitarmos a esse fundamentalismo da letra, corremos o risco de ser uma personagem da "Palavra" do Dreyer, incapazes de esperar pelos sinais.

    Até os muçulmanos, esse povo zeloso da sua iconoclastia, depois de inocentemente enumerarem os 99 nomes de Deus, aperceberam-se do seu atrevimento, sentiram esse aguilhão na carne e salvaguardaram a natureza misteriosa do centésimo. Como a Igreja Católica (e ainda mais a Ortodoxa)salvaguarda a natureza misteriosa da Eucaristia, depois das 99 alegorias litúrgicas.

    Desde que não percamos de vista o centésimo nome...

    (primeiro comentário neste blog. As mais calorosas saudações evangélicas a todos!)

     
  • At 27 de março de 2007 às 18:23, Blogger zazie said…

    Comentário muito pertinente este. Era isto que estava a tentar dizer, quando falei na salmodia, na “língua dos pássaros” a par da “Assinatura” divina, nas imagens. Este é que o verbo que é logos. Por isso mesmo também me custa a crer que os ícones ortodoxos ainda consigam provar o efeito de imanência dos tempos iniciais. Porque têm a marca do tempo, têm “um estilo” que os torna também representação.

    Por alguma razão o Malevitch e o Tatlin acharam que era possível criar uma nova linguagem icónica sem esse referente histórica- partindo de um ponto zero de representação

     
  • At 19 de abril de 2016 às 04:49, Anonymous Anónimo said…

  • At 19 de março de 2018 às 22:01, Blogger rehabgad1 said…

  • At 6 de junho de 2018 às 02:06, Blogger jeje said…

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