Temos um navio antigo tão recente, de tão renovada e confusa tripulação. Guiamo-nos pela luz dum longínquo farol, e por uma constelação que luz na nocturna abóbada celeste. Alguns de nós tomam a tarefa de guias. É responsabilidade sua a fixação da rota relativamente ao farol, e a cartografia derivada da constelação.
Dada a nossa peculiar força de domínio e organização, requeridas pela arte de navegar, os guias por vezes tomam-se como senhores do farol, e em casos extremos, da própria constelação. Por muito estranho que pareça, visto parecer evidente a qualquer um que um navio com o farol no convés e a constelação no porão, está impedido de ter uma rota ou sequer antever a sua Ítaca, trata-se dum achaque muito comum. Não só os guias são abrasados por tal delírio, embora sejam aqueles a quem, naturalmente, mais ocorre. Muitas vezes, aqueles que se erguem em aviso, são contaminados pelo mesmo vírus. Toda a tripulação está avisada para estar atenta aos indícios desta terrível doença que a todos coloca em perigo.
Os mais sábios de nós dizem para não nos perturbarmos: Ítaca é donde vimos, e mesmo através da névoa do terrível esquecimento, o nosso coração reconhece os desvios da rota, se nos escutarmos com atenção no recolhimento e no silêncio. Falam sobretudo do brutal barulho que é o esquecimento, e não como poderíamos esquecidos pensar, uma ausência ou apagar. O esquecimento é aquilo que retém as coisas no seu segredo e origem, dizem eles, cobertas pelo troar do tempo e da sua distância. Foi o que no esquecimento fulgura, que nos fez fazer-nos ao mar, dizem, e avisam-nos de sobremaneira contra o cântico das sereias, tão perigoso como o excesso de domínio e organização, tão ensurdecedor, dizem eles.
Sabemos também que o navio é assombrado pelo espírito da rota, e isso nos faz ter confiança, mesmo na mais desviada direcção ou quando a tempestade escurece o céu e o horizonte fazendo desaparecer o farol e a constelação. No entanto, também é o que nos mantém no susto, porque o espírito nunca se manifesta dos mesmos modos, e raramente como estamos à espera. A maioria das vezes, é difícil distingui-lo de outra coisa qualquer. Temos um livro onde está escrito: é pelo reverso das coisas que o espírito arrebata, e nunca pelo seu rosto.
Este relatório foi-me pedido para aqueles que o possam encontrar enquanto se procuram, e vai lançado ao mar no estômago duma baleia bebé, neste dia contado a partir dos antigos relatos que todos esquecemos.
Ass.: o escriba ocasional. . vítor mácula
nota de rodapão: este texto, tal como todos os outros por mim acometidos e aqui postados, remete para a Igreja na sua globalidade histórica e temática; qualquer semelhança com alguma novela da vida inautêntica é meramente circunstancial; é claro que toda a globalidade só ganha sentido, sobretudo religioso, quando desveladora, criadora e orientadora das circunstâncias vividas, e simultaneamente quando desvelada, criada e orientada por estas; mas qualquer subsumpção de um dos polos no outro, constitui precisamente a tão temida cegueira, que no seu limite não deixa ver nem o dedo nem a lua.
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O texto é bonito (mais que o costume, lol) a imagem é inteligente e a mensagem clara.
Obrigado Vitor.
Não sei porquê, lembraste-me uma coisa dque o Timshel escreveu em tempos sobre a nave dos loucos que somos (mesmo sabendo que não te referes a isto aqui) tirada da epistola de S.Paulo aos corintios (se não erro) mais ou menos isto (o que decorei):
Onde está o sábio?
Onde está o filósofo?
Não escolheu Deus a loucura e os fracos, para confundir os fortes deste mundo?