sábado, março 07, 2009
E la nave va

Temos um navio antigo tão recente, de tão renovada e confusa tripulação. Guiamo-nos pela luz dum longínquo farol, e por uma constelação que luz na nocturna abóbada celeste. Alguns de nós tomam a tarefa de guias. É responsabilidade sua a fixação da rota relativamente ao farol, e a cartografia derivada da constelação.

Dada a nossa peculiar força de domínio e organização, requeridas pela arte de navegar, os guias por vezes tomam-se como senhores do farol, e em casos extremos, da própria constelação. Por muito estranho que pareça, visto parecer evidente a qualquer um que um navio com o farol no convés e a constelação no porão, está impedido de ter uma rota ou sequer antever a sua Ítaca, trata-se dum achaque muito comum. Não só os guias são abrasados por tal delírio, embora sejam aqueles a quem, naturalmente, mais ocorre. Muitas vezes, aqueles que se erguem em aviso, são contaminados pelo mesmo vírus. Toda a tripulação está avisada para estar atenta aos indícios desta terrível doença que a todos coloca em perigo.

Os mais sábios de nós dizem para não nos perturbarmos: Ítaca é donde vimos, e mesmo através da névoa do terrível esquecimento, o nosso coração reconhece os desvios da rota, se nos escutarmos com atenção no recolhimento e no silêncio. Falam sobretudo do brutal barulho que é o esquecimento, e não como poderíamos esquecidos pensar, uma ausência ou apagar. O esquecimento é aquilo que retém as coisas no seu segredo e origem, dizem eles, cobertas pelo troar do tempo e da sua distância. Foi o que no esquecimento fulgura, que nos fez fazer-nos ao mar, dizem, e avisam-nos de sobremaneira contra o cântico das sereias, tão perigoso como o excesso de domínio e organização, tão ensurdecedor, dizem eles.

Sabemos também que o navio é assombrado pelo espírito da rota, e isso nos faz ter confiança, mesmo na mais desviada direcção ou quando a tempestade escurece o céu e o horizonte fazendo desaparecer o farol e a constelação. No entanto, também é o que nos mantém no susto, porque o espírito nunca se manifesta dos mesmos modos, e raramente como estamos à espera. A maioria das vezes, é difícil distingui-lo de outra coisa qualquer. Temos um livro onde está escrito: é pelo reverso das coisas que o espírito arrebata, e nunca pelo seu rosto.

Este relatório foi-me pedido para aqueles que o possam encontrar enquanto se procuram, e vai lançado ao mar no estômago duma baleia bebé, neste dia contado a partir dos antigos relatos que todos esquecemos.

Ass.: o escriba ocasional.
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vítor mácula

nota de rodapão: este texto, tal como todos os outros por mim acometidos e aqui postados, remete para a Igreja na sua globalidade histórica e temática; qualquer semelhança com alguma novela da vida inautêntica é meramente circunstancial; é claro que toda a globalidade só ganha sentido, sobretudo religioso, quando desveladora, criadora e orientadora das circunstâncias vividas, e simultaneamente quando desvelada, criada e orientada por estas; mas qualquer subsumpção de um dos polos no outro, constitui precisamente a tão temida cegueira, que no seu limite não deixa ver nem o dedo nem a lua.
posted by @ 12:29 da tarde  
2 Comments:
  • At 7 de março de 2009 às 16:05, Blogger cbs said…

    O texto é bonito (mais que o costume, lol) a imagem é inteligente e a mensagem clara.
    Obrigado Vitor.

    Não sei porquê, lembraste-me uma coisa dque o Timshel escreveu em tempos sobre a nave dos loucos que somos (mesmo sabendo que não te referes a isto aqui) tirada da epistola de S.Paulo aos corintios (se não erro) mais ou menos isto (o que decorei):
    Onde está o sábio?
    Onde está o filósofo?
    Não escolheu Deus a loucura e os fracos, para confundir os fortes deste mundo?

     
  • At 9 de março de 2009 às 10:02, Blogger Vítor Mácula said…

    não sei se tal significa que devamos fazer tábua rasa de toda a sabedoria e ética natural; sou mais tomista: a loucura ou excesso renovante da revelação leva à perfeição natural; perfazer não é negar a essência humana mas sim superar a sua incompletude e desvio de si originário.

    nem a bondade, nem a beleza, são para ser rechaçadas; pelo contrário, é a ferida nelas, que as leva a soçobrar no seu inverso, que é curada, renovando-as no esplendor que reflecte a age o sentido originário da criação e do humano.

     
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