segunda-feira, março 02, 2009
Sacrum facere
A humildade da incarnação, que se mostra de imediato no nascimento no estábulo – é pura verdade vital. Não se trata de nascer no desfalecimento da vida. Esta pequenez, é a força real da vida.

É por essência, e não por condicionamento e frustração, que Deus é humilde. Trata-se duma das dinâmicas do amor divino: dar-se até ao fim. Assim é a relação interna da trindade divina, e daí o transbordo para a criação. Deus não se retém: é doação pura, até ao aniquilamento. E esse aniquilamento é vida em abundância, é fundamento e fonte, é o minúsculo indício que em tudo o que há o faz precisamente – haver.
A verdade da existência mostra-se no despojamento e nudez, e não nos aparatos de grandeza. É nesse sentido que o seu reino não é deste mundo, e como poderia sê-lo? As potências do mundo são separação, máscara e ilusão – quando tomadas como verdade fundamental. É no útero da vida e no leito da morte que se configura a existência.
A doação irrestrita não faz contas, e assim o amor cobre a multitude dos pecados, liberta de imediato qualquer um, seja qual for o tamanho da sua desorientação. Só conta até um – total e absolutamente um. Duma vez e de imediato. Sempre e em toda a parte.
A trindade divina não é Zeus irado na sua grandeza, à espera que as dores e as lágrimas lhe satisfaçam uma justiça quantitativa, distributiva. Faz suas as dores e lágrimas, e os risos e as esperanças, numa unidade que os extremos reúne. E nunca desespera, porque nada espera e tudo entrega.
Não se trata mesmo de pagar a conta na mercearia divina. Deus não é um cobrador de impostos, e a sua aliança não é um contrato de interesses próprios e fechados.
Um criador de talião, eis a inversão natural do amor sobrenatural, que sendo pura e absoluta dádiva, exige na sua comunhão – que sejamos também pura dádiva. Ou se preferirmos, a demonização contratualista e contabilística – é a resistência espontânea à inversão de valores que o cristianismo veio deflagrar.
Este é o sacrifício – de si próprio, em dádiva e doação. Só a pura dádiva faz sagrado. Porque só a pura dádiva tudo recebe – precisamente no mesmo movimento em que tudo dá.
Todo de mim a ti te entrego, e em ti te recebo. De outro modo, está-se na fantasmagoria, na fantasia de ti que se constitui na distância de mim. Ou doutro modo: na idolatria, na representação contemplada que não se vive e mata. A amada na torre, é a morte do amado, e o dragão - é o rosto dessa morte.

E todo o resto, por muito barulho e resplendor, por muito fulgor e adoração, por muita palavra e convicção, na verdade – não passa de medo e solidão.


vítor mácula
posted by @ 11:32 da manhã  
3 Comments:
  • At 2 de março de 2009 às 18:14, Blogger Nuno Fonseca said…

    A Palavra não ensina a abébia, mas o perdão.

    Se nos ficarmos por uma dádiva cega, sem a cobração de justiça que julgo aqui pores de lado, ficas com um cristianismo sem cruz, um Jesus sem ser Cristo.
    Ficas com um islamismo.

    Como disse o profeta Isaías, 'Ao Senhor agradou moê-lO'. E quando o Filho bebeu do cálice da santa ira, estava a resolver a seguinte busílis:

    'Se Deus é santo e amoroso, como pode justificar o homem injusto e criminoso e continuar logicamente justo na Sua misericórdia? E que amor haveria no esquecimento do mal genocida, do flagelo pedófilo, no holocausto da corrupção? Que juíz perdoa todo este pecador e o iliba com total desdém pela dor dos vitimados?'

    E ainda a maior vítima, Vítor, é Deus. E apenas por não nos ser conveniência antropocêntrica admitir que a ofensa do pecado contra o Senhor é mais grave que todo o sofrimento humano, não devemos excomungá-la da perfeição do eterno conselho da Trindade, que lemos na Escritura Sagrada. Ai do homem que nega a Páscoa; que a agonia do Inferno é justa; e o terror da Cruz, justificante!

    Quem não reconhecer a ira de Deus por justiça satisfeita em Cristo crucificado, irá reconhecê-la como aplacada em si, lá onde haverá pranto e ranger de dentes.

    Seria prazeroso à minha carne pregar algo menos ofensivo e digno de martírio romano, mas é este o Evangelho, em que não me envergonho, como os apóstolos, que no-lo delegaram assinado no sangue das suas mortes.

    Nada faz Cristo mais sagrado que conhecer o Seu calvário, onde Ele se tornou a maldição que eu sou a Deus, que o teve por mim para ser justo em condenar-me, e misericordioso em perdoar-me. Assim é para o povo escolhido de Jesus, por quem deu a Sua vida.

    §

    SOLI DEO GLORIA

     
  • At 2 de março de 2009 às 18:47, Blogger Vítor Mácula said…

    2 notas para os incautos acerca da desinformação que os tolhe e governa, e 2 indicações do modo dela se libertarem:

    1.o islamismo retém em Deus cobração de justiça;
    2.na unicidade divina, não pode haver contradição entre a sua justiça e a sua essência amorosa, ou outro atributo divino qualquer; uma é correspondência da outra; e sim, nada há de mais terrível do que não corresponder nem se ter constituído sob a sua acção e configuração;
    3.o cristão é chamado a ser amorosamente justo como o “Pai que está no céu”; quando não conhece (por exemplo, o islamismo) ou não compreende um texto de outro cristão, deverá ele deformar o islamismo ou tresler o texto cristão?
    4.todo o condicionamento discursivo e prático sem aferição contínua de si e das suas correspondências, assim como daquilo a que se conecta na convergência e na divergência, só pode produzir frutos de maledicência e falsidade.

    Nota às notas: reparos circunstanciais podem desvelar-nos males universais.

    Indicação às indicações: para aplicar por quem as escreveu e por quem as leia, ou não; nas mãos do Deus vivo, nada há a temer mais do que o desamor – a inverdade a que nos conduz o fechamento, e a desvitalização nas relações com o outro, as coisas, os seres.

    sangue forte
    saúde e santidade
    sal da terra

     
  • At 2 de março de 2009 às 19:03, Blogger Vítor Mácula said…

    ao Nuno: sim, nego a interpretação do cordeiro imolado enquanto pagamento de uma dívida, no sentido estrito, isto é, como na mercearia, pelas razões aduzidas no texto, e outras tantas que viriam na discussão e análise destas.

    salud

     
Enviar um comentário
<< Home
 
 
Um blogue de protestantes e católicos.
Já escrito
Arquivos
Links
© 2006 your copyright here