"Dois homens subiram ao templo, a orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo, desta maneira: Ó Deus, graças te dou, porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dizímos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque, qualquer que a si mesmo se exalta, será humilhado, e, qualquer que a si mesmo se humilha, será exaltado." (Lc 18, 10-14)
Na típica pregação dominical (pelo menos em meios católicos) o enfâse na interpretação desta passagem das Escrituras costuma ir todo para a hipocrisia do fariseu que não reconhece as suas faltas. Sendo verdade que também é disso que se trata, julgo que muitas vezes não é referida a questão essencial. Porque podia dar-se o caso do fariseu ter analisado com inteira honestidade os seus actos e pensamentos e neles não ter encontrado falta. Improvável? Sim, mas possível. Podia tratar-se de um justo, de um homem que determinada e corajosamente se aplicava a seguir os preceitos do Senhor. Provavelmente um benemérito filantropo, um homem cândido e afável, gentil e honesto, atencioso para com aqueles que o rodeavam. Talvez tivesse adoptado como suas as crianças abandonadas das ruas de Jerusalém, talvez visitasse os leprosos corajosamente consciente do possível contágio, talvez a sua esmola dada aos idosos fosse de uma generosidade ímpar. Não faltaria quem lhe estivesse reconhecido, quem o louvasse como exemplo, quem o estimasse profundamente. Sobre ele qualquer maledicência seria imediatamente reconhecida como tal e também poucos seriam tentados a nela se exercitar pela grande bondade com que o publicano sempre os cumulara.
Seria necessário esboçar um retrato do publicano, com estes e outros meios consideravelmente superiores em eloquência, de tal forma que a própria assembleia se esquecesse da leitura original e desenvolvesse uma estima apaixonada por este homem do Senhor. E quando a assembleia já estivesse prestes a elevar este homem aos cânones dos santos, seria o momento apropriado para o padre mencionar o publicano.
Sim é certo de que se mostrava arrependido, mas que teria feito o publicano para que tal acontecesse? Como cobrador de impostos era dono de um temível poder sobre as populações. Possivelmente teria a balança ligeiramente desregulada para seu próprio benefício, taxando abusivamente as populações para seu proveito próprio, especialmente os mais ignorantes e desprotegidos, as idosas solitárias e miseráveis. Talvez o coração não se lhe movesse diante dos pedidos de clemência por parte da mãe de 10 crianças que batalhava diariamente para conseguir alimento para a sua prole. Não aceitaria sequer um ligeiro prolongamento do prazo sabendo muito bem que o seu marido voltaria a casa dentro de dias com o produto do trabalho de uma semana, suficiente para pagar os impostos. "Não arredo pé enquanto a totalidade do imposto não for paga" alegaria o cobrador, perfeitamente ciente de que seria objectivamente impossível que isso acontecesse. E então talvez exigisse favores de natureza degradante por parte da mãe. Não satisfeito ainda, talvez o exigisse das crianças também.
Seria preciso pintar o quadro mais negro possível, de tal forma abjecto, de tal forma vil e deplorável que se apagaria da assembleia qualquer memória do publicano original e vissem neste homem um garantido condenado ao fogo do Inferno. Seria provável até que a assembleia ficasse chocada com a própria imaginação tétrica do sacerdote, não correspondendo à imagem sacrossanta que usualmente transparecia. E quando a este ponto se tivesse chegado, seria altura de afirmar:
"Pois bem, o que Jesus nos diz é que o segundo homem saiu justificado e o primeiro não".
Este é de facto o escândalo do cristianismo, não apenas o facto do publicano se salvar mas o do fariseu não se salvar.
Porque verdadeira causa de escândalo não é apenas o publicano ser perdoado, é o publicano entrar primeiro que o fariseu, ou seja, poder vir a entrar primeiro que eu!
Claro que me diriam que este seria um cenário altamente improvável, que as obras também dizem alguma coisa sobre o estado espiritual das pessoas e a sua abertura à Graça salvífica. Concedido, e daí a importância das obras na Salvação. Mas é fundamental não esquecer que as obras adquirem mérito pela Graça com que são imbuídas, pela sua associação a Cristo. E se para Deus existe mérito, para nós as nossas próprias obras mérito algum devem ter. Mas este é o paradoxo do cristianismo, a confusão da justiça divina que Jesus também menciona na parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20). A essência de tudo isto é maravilhosamente descrita nesta deixa do Stárets Zóssima nos Irmãos Karamázov:
"«Mãezinha, minha pombinha, na verdade cada qual tem culpa perante todos, por todos, só que as pessoas não o sabem e, se viessem a saber, seria imediatamente o paraíso na Terra» Meu Deus, penso eu e choro, isto não pode ser mentira... na verdade posso ser eu o mais culpado, por todos, posso ser eu o pior homem do mundo" Luís
|
Foi a ler coisas como “Se isto é um homem” de Primo Levi ou ver coisas como “Nuit et brouillard” de Resnais que julgo ter apercebido a essência da Graça divina.
De facto, perante o mal imperdoável, tornou-se-me evidente “cada qual tem culpa perante todos, por todos” e foi essa compreensão que me emocionou e envergonhou.
O mal que se faz conscientemente, entre a humanidade, em meu entender, recai sobre todos nós, todos, “fariseus” e “publicanos” somos manchados pelo mal.
É nessa perspectiva que entendo a redenção pela Graça.
O cristianismo difere das outras religiões, devido à mistura escandalosa do Sublime com o miserável, devido à coabitação escandalosa do divino com o humano, mas que é o que permite a redenção deste por Aquele.
Através do perdão - por isso poderia surgir o Paraíso - o único perdão que é o Amor que vem de Deus, como já chamou à atenção o Tiago Oliveira num post.
Eu, que me julgo bom, posso ser e sou o pior homem do mundo e só a Graça me pode resgatar ao mal.
Por isso “as obras (só) adquirem mérito pela Graça com que são imbuídas” como dizes.