sábado, junho 23, 2007
Há cerca de 800 anos...

«Terá a originalidade de Francisco estado apenas em ter resistido à tentação herética a que a maior parte dos Pobres cederam? É certo que há os que, neste início do século XIII, acabaram por ficar na Igreja: em 1201 uma comunidade de Umiliati ortodoxos, em 1208 os Poverti Cattolici do Vaudois convertidos por Durando di Huesca, em 1210 um outro grupo de valdenses em redor de Bernardo Primo. Mas que é isso perante a multidão de Albigenses e, na própria Itália, no tempo de Francisco, os Cátaros que têm um bispo em Florença e uma escola em Poggibonsi, os Patarinos, os Arnaldistas, os Valdenses? Em 1218, em Bergamo, reúne-se um congresso de Poveri Lombardi, em 1215 Milão é chamada «fossa de hereges» (fossa di eretici). Florença é, ainda em 1227, considerarda infestada pela heresia. E, antes do mais, esteve Francisco prestes a ser herege? É preciso distinguir as tendências e as circunstâncias. Terá por certo havido em umas e outras elementos que poderiam ter conduzido Francisco à heresia. A intransigente vontade de praticar um Evangelho integral despojado de contributos da história posterior da Igreja, a desconfiança para com a cúria romana, a vontade de fazer reinar entre os Menores uma igualdade quase absoluta e de antecipar o direito de desobediência, a paixão pelo despojamento levada ao ponto da manifestação exterior do nudismo que Francisco e os seus pares praticaram a exemplo dos adamitas, o lugar conferido aos laicos, tudo isto pareceu perigoso, quase suspeito à cúria romana. E, juntando os seus esforços aos dos ministros e dos guardiões assustados com tanta intransigência em Francisco, submeteu-o a pressão e exigiu dele, quando não que renegasse, pelo menos que renunciasse, o que deve tê-lo conduzido, em 1223, ao limiar da tentação herética. Resistiu-lhe. Porquê? Muito provavelmente porque nunca alimentou os sentimentos que, segundo ele próprio, levaram para a heresia uma parte dos franciscanos Spirituali. Francisco não foi milenarista nem apocalíptico. Nunca interpôs um Evangelho eterno, uma idade do ouro mítica entre o mundo terrestre onde vivia e o além do cristianismo. Não foi o anjo do sétimo selo do Apocalipse ao qual indevidamente o assimilaram certos Espirituais. As elucubrações escatológicas heréticas dos Espirituais vieram de Gioacchino da Fiore, não de Francisco.

Mas o que o reteve, sobretudo, foi a determinação fundamental, incessantemente repetida fora de pressões, de permanecer a qualquer preço (com efeito, pagará caro), ele e os seus irmãos, dentro da Igreja. Porquê? Talvez porque não queira quebrar essa unidade, essa comunidade que tanto prezava. Mas sobretudo por causa do seu sentir, da sua necessidade visceral de sacramentos. Quase todas as heresias medievais são anti-sacramentalistas. Ora Francisco, no seu ser profundo, precisa dos sacramentos e desde logo do primeiro de todos, a Eucaristia. Para dar este sacramento é preciso um clero, uma Igreja. Por isso Francisco - e isto pode causar surpresa - está disposto a perdoar muitas coisas aos clérigos em troca deste ministério dos sacramentos. Numa época em que mesmo os católicos ortodoxos se interrogam sobre a validade destes sacramentos administrados por padres indignos, Francisco reconhece-a e afirma-a sem rodeios. É porque destingue com cuidado entre eclesiásticos e laicos que precisa dos primeiros e se mantém dentro da Igreja.»


Excerto de "Francesco d'Assisi" de Jacques Le Goff (reputado e insuspeito historiador medieval).


Retrato de São Francisco por Margheritone d'Arezzo (segundo quartel do século XIII). Museu do Vaticano.


Antonius Block (texto a negrito por minha iniciativa)
posted by @ 1:38 da tarde  
11 Comments:
  • At 25 de junho de 2007 às 11:28, Anonymous Anónimo said…

    não poderia deixar passar a indistinção entre "destinguir" e distinguir lol

     
  • At 25 de junho de 2007 às 11:58, Blogger cbs said…

    "Mas sobretudo por causa do seu sentir, da sua necessidade visceral de sacramentos"

    O irmão Francisco é o meu herói, o mais humanamente bom dos cristãos de Roma (passe o exagero).
    Claro que tinha de pagar o preço. mas deixou o exemplo.

     
  • At 25 de junho de 2007 às 12:14, Blogger maria said…

    Tema bem pertinente. Sobre vários aspectos.

    O sacramento de Deus é Cristo. Os sacramentos não valem por si mesmos. Valem na medida da nossa identificação com Cristo.

     
  • At 25 de junho de 2007 às 14:04, Anonymous Anónimo said…

    Há também os que por essa época, final do sec. XII, preferiram a Bíblia as sacramentos, foram condenados e perseguidos pela igreja de Roma, e chegaram aos nosso dias: os valdenses. Tinham também, como os franciscanos, um cuidado especial com a renúncia aos bens deste mundo.

    Pedro Leal

     
  • At 25 de junho de 2007 às 14:07, Blogger Luís Sá said…

    Cara MC,

    Precisamente porque a Eucaristia é Cristo é que vale por si mesma, independentemente da identificação com Ele mais ou menos conseguida de todos nós (e sobretudo do sacerdote). A tua 2ª afirmação entra em contradição com a 1ª. O sacramento é Cristo mas Cristo não vale por si mesmo? Ah a menos que negues que a Eucaristia é verdadeiramente Cristo, mas que apenas remeta para Ele sem ser pura e simplesmente Ele encarnado. Que Cristo é apenas o Cristo de há 2000 anos. Aí sim dependeria da nossa identificação com Cristo (sendo assim que muitos protestantes o consideram).

     
  • At 25 de junho de 2007 às 18:08, Blogger maria said…

    Caro Antonius,

    não tenho especial orgulho em ser contraditória, mas também não me apoquento por aí além quando descubro (ou me descobrem) em... :)

    Uma pessoa que não participe nos sacramentos não tem acesso a Cristo?

    E uma pessoa que não é baptizado e se pôe na fila da comunhão, comungou?

     
  • At 25 de junho de 2007 às 19:34, Anonymous Anónimo said…

    Sacramentos, baptismos, comunhões, crismas, casamentos, funerais, benzeduras, rezas por alma...
    Ah a burocracia, a burocracia!...
    A genial ciência que inventa "dificuldades" para poder vender as "facilidades"!

     
  • At 25 de junho de 2007 às 20:09, Blogger Luís Sá said…

    Caro Anónimo multi-facetado,

    Lembro só que o frequente ataque à pretensa complexidade da fé cristã (católica ou não) ao contrário do que é moda dizer-se, nada tem de pro-científico ou de pretensa superioridade intelectual. As explicações mais simples do real são em geral as erradas e as supersticiosas. A ciência, tal como a filosofia ou a religião não buscam em primeiro lugar a simplicidade. Buscam a verdade. A simplicidade vem por acréscimo. E aliás, tal como na ciência, tudo isto deriva de dois ou três princípios muito básicos que depois se manifestam de diversas formas.

    MC,

    Tocaste num ponto nevrálgico para mim no que à 2ª pergunta diz respeito. A ver se escrevo qualquer coisa de mais prolongado sobre o tema. Quanto à 1ª pergunta, claro que uma pessoa que não participe nos sacramentos tem acesso a Cristo. A questão não está naquilo ao qual ele não tem acesso mas naquilo ao qual ele pode ter acesso se assim o desejar. Se Cristo nos deixou os sacramentos, porque não experimentá-Lo neles? São veículo previligiado, o que não quer dizer que sejam o único. Diziam os Padres da Igreja que toda a Criação é sacramento, e portanto, nesse sentido, essa experiência divina é absolutamente gratuita.

     
  • At 25 de junho de 2007 às 23:39, Anonymous Anónimo said…

    Caro Antonius Block
    Agradeço a atenção, mas talvez para provar que o que eu disse "nada tem de pro-científico ou de pretensa superioridade intelectual", uma maneira polida, como todos os seus textos, de me chamar ignorante, não entendi raspas da sua resposta.
    Em que é o que eu escrevi sobre os "esquemas" que as igrejas foram inventando para sacar dinheiro aos crentes e em alguns casos se enriquecerem despudoradamente, põe em causa a complexidade ou simplicidade da fé de quem quer que seja?

     
  • At 26 de junho de 2007 às 10:10, Blogger Hadassah said…

    Olá a todos,

    A mim parece-me que o "crentes" tem alguma razão no que diz ...

    Tal como diz o Timshel no seu post depois deste, o que Deus quer de nós é tão simples e tão prático...

    Agora não sei se a intenção inicial das instituições, terá sido puramente "comercial", creio que não. A mim parece-me mais estratégia de "Marketing", para atraír uma natureza desconfiada de tudo o que parece demasiado "gratuito"...

     
  • At 26 de junho de 2007 às 12:10, Blogger maria said…

    Antonius, estou com os Padres da Igreja..."toda a criação". Mas o bicho homem é um animal que dispersa muito...eu preciso da disciplina dos sacramentos da Igreja. ;)

    Só acho que devemos estar atentos para que não sejam veículo de exclusão. E é com toda a facilidade do mundo que se exclui.

    Também nos católicos se afunilou toda a vida da fé no ritual de três sacramentos: o "carrinho" o "carrão" e a "carreta". É o que me aflige.

    Quanto à minha 2ª questão, gostarei de te ler...mas não queimes as pestanas. Uma coisa são as nossas teorias/balbuciares e outra é a graça de Deus. ;)

     
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