sexta-feira, maio 04, 2007
A religião estática e a religião dinâmica
A mesma divisão que se fez na moral se aplica igualmente a religião: há uma religião estática e uma religião dinâmica.

A religião estática consiste numa reacção defensiva da natureza contra os efeitos da actividade da inteligência, que ameaçam oprimir o indivíduo ou dissolver a sociedade. A religião estática prende o homem à vida e o indivíduo à sociedade mediante fábulas que se assemelham a canções de berço. A religião é obra da "função fabuladora" da inteligência.
A inteligência, em sentido estrito, ameaça desfazer a coesão social, e a natureza não pode opor-lhe o instinto, cujo lugar foi precisamente substituído no homem pela inteligência. Mas a natureza ajuda-se mediante a produção da função fabuladora. Se o homem sabe, pela inteligência, que tem de morrer, coisa que o animal não sabe, e se a inteligência lhe ensina que entre a tentativa e o êxito desejado existe o espaço desanimador do insondável, a natureza volta a ajudá-lo a suportar este conhecimento amargo, fabricando, graças a sua função fabuladora, deuses.
O papel da função fabuladora nas sociedades humanas corresponde ao do instinto nas sociedades animais.

A religião dinâmica, a mística, é algo inteiramente diferente. Resulta de um retorno na direcção donde procede o élan vital, e nasce da pressentida captação do inacessível a que a vida aspira. Este misticismo é próprio somente de homens extraordinários. Não se manifestou ainda entre os velhos gregos, como nem em forma perfeita na Índia, onde não deixou de ser puramente especulativo.
Contudo surgiu entre os grandes místicos cristãos, que possuíam uma saúde espiritual que se pode qualificar de perfeita. A religião cristã aparece como a cristalização deste misticismo, mas, por outro lado, constitui o seu fundamento, porque os místicos são todos imitadores originais, embora imperfeitos, Daquele que nos deixou o Sermão da Montanha.

A experiência dos místicos permite-nos defender não só a probabilidade das concepções relativas à origem do élan vital, como também a afirmação da existência de Deus, que não se pode provar com argumentos lógicos.
Os místicos ensinam também que Deus é o amor, e nada impede que os filósofos desenvolvam a ideia, sugerida por eles, de o mundo não ser mais do que um aspecto palpável deste amor e da necessidade divina de amor.
Da experiência dos místicos, corroborada pelas conclusões da psicologia, pode igualmente afirmar-se, com uma probabilidade que toca nas raias da certeza, a sobrevivência após a morte.

J. M. Bochenski – Henri Bergson in A Filosofia Contemporânea Ocidental. Herder, São Paulo 1968
cbs (dedicado à Hadassah e ao Antonius)
posted by @ 1:17 da tarde  
5 Comments:
  • At 4 de maio de 2007 às 15:19, Blogger zazie said…

    Não sei quem é o gajo mas diz para aí um disparate:

    "A inteligência, em sentido estrito, ameaça desfazer a coesão social, e a natureza não pode opor-lhe o instinto, cujo lugar foi precisamente substituído no homem pela inteligência "

    Isto é falso. Se algo já foi provado é que o instinto e a inteligência se misturam. O nosso Damásio bem se farta de trabalhar para deitar abaixo este cartesianismo fora de época.


    Como o tipo parte de um pressuposto errado, depois, o que diz sobre os místicos fica incompleto.

    Os místicos foram muito importantes. Também os prefiro em relação aos dialécticos. Mas, os místicos conheciam essa pelnitude e chegavam a verdades superiores por um tipo de ascese muito "instintiva" muito sensitiva, combinada com o amor.
    Mas não o fizeram por separação do pensamento em relação a essa via "transcendente". Uniam uma com a outra.

    Mas perderam, a escolástica destruiu esse caminho que, também ele se asfastava do mundo.

    Gostava de saber o que tinham a dizer os Luteranos da casa sobre isto.

    Porque o Lutero bem que andou às voltas com o S. Bernardo. Mas foi demasiado complicado para aquela mente retorcida e racionalista que desconhecia o benefício da Virgem como intermediária para levar a fé ao coração.

     
  • At 4 de maio de 2007 às 23:13, Blogger Hadassah said…

    Obrigada CBS.

    Zazie,
    Sei muito pouco sobre as voltas do Lutero com o S. Bernardo, portanto vou esperar que algum meu irmão historicamente mais esclarecido, satisfaça esse teu desejo. Mas não me parece muito correcto chamá-lo (ao Lutero) de racionalista, quando defendia a salvação mediante a fé no próprio Deus, em vez das muitas obras.


    Fez muito bem Deus não ter deixado rasto divino na origem do "élan vital", que permitisse a argumentação lógica da sua existência. O que seria das nossas cabecinhas, àvidas de conhecimento, nesta jornada terrena?


    Para mim o instinto serve a nossa sobrevivência física e a inteligência a sobrevivência espiritual (e/ou intelectual). Os dois conjugados, a nossa sobrevivência social.


    Para mim o que nos conserva ainda por cá é o amor. Daí ter sido o amor, o maior mandamento de Deus. Quando amamos e nos sentimos amados, sentimo-nos "encaixados" no nosso existir. Incluído está obviamente também, o amor próprio, que curiosamente é actualmente um dos "amores" mais afectado na nossa sociedade (daí as bolimias, as anorexias, as depressões, os suicídios), etc. (outra longa conversa).

    Depois desta divagação, saio deste "post" com o meu ego feminino vaidoso. Sou uma mulher "mística"... eheheh

    bom fds
    hadassah

     
  • At 5 de maio de 2007 às 02:48, Blogger cbs said…

    "Para mim o instinto serve a nossa sobrevivência física e a inteligência a sobrevivência espiritual (e/ou intelectual). Os dois conjugados, a nossa sobrevivência social"

    Hadassah
    Não é bem assim porque ambas as aptidões servem a sobrevivencia física; e ambas tem uma dimensão espiritual, que num caso tende para o intelecto e noutro para a intuição, como na arte e na religião; mas misturam-se.

    No interior da animalidade é onde podemos encontrar a dualidade instinto-inteligencia.
    Instinto e inteligencia não são realmente coisas diferentes, têm a mesma origem: a vida que se adapta.
    Instinto e inteligencia são duas soluções divergentes, mas simétricas da necessidade de adaptação animal.

    Assim o instinto opera no próprio coração da realidade, enquanto a inteligencia implica uma distanciação do real.
    São dois aspectos complementares de uma mesma tendencia primitiva.

    Mas nos insectos (abelhas e formigas) podemos falar de uma inteligencia colectiva.
    Enquanto nos mamíferos primatas, sobretudo no Homem, também podemos encontrar uma forma particular de conjunção da inteligencia (conhecer analítico, mediato, inseguro) com o instinto (saber total, imediato, seguro): chamamos-lhe intuição. Está paredes meias entre o instinto e o intelecto.

    Estas tendencias distinguem-se perfeitamente e misturam-se em certas zonas limite. Tudo o que aparece nos dois livros principais de "O erro de Descartes" e "O sentimento de Si" vai no mesmo sentido daquilo que a filosofia de Bergson já sustentava: o erro do mecanicismo.

     
  • At 5 de maio de 2007 às 12:06, Blogger Hadassah said…

    tens razão CBS ... talvez tivesse dito melhor, "serve" mais que os outros em cada uma das sobrevivências.

     
  • At 29 de agosto de 2017 às 04:53, Blogger Unknown said…

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