quinta-feira, janeiro 04, 2007 |
Contrabalançando o cristianismo incontinente dos católicos desta vizinhança |
Perdido por cem, perdido por mil. Deixem-me usar aqui um rascunho de um texto que queria publicar na Revista Atlântico no número de Dezembro em jeito de "Uma Pena de Morte no Sapatinho". Faltou-me o talento e a dedicação para fazer das linhas seguintes um artigo condigno. Serve para o efeito:
"É vê-los a chegar de fisga na mão. Encavalitam-se um nos outros, convictos da sua própria encenação do roubo da peruca do Professor Dobbins. Conseguem mesmo materializar num longínquo vulto campestre o espírito de Tom Sawyer. Qual o motivo de tão lúbrica ansiedade? A presumivelmente fantástica contradição apontada aos que se opõem ao aborto ao mesmo tempo que apoiam a pena de morte. É caso para interromper a algazarra e questionar a petizada: o que tem o nu a ver com as alças? Experimentemos amolecer primeiro os corações. Winston Churchill, figura devidamente eternizada em bustos presentes em 61% dos escritórios dos consumidores da Revista Atlântico, defendia que os líderes nazis deviam ser poupados dos caprichos legislativos de Nuremberga. O rotundo britânico, tendo em conta a matéria infractora dos germânicos, sugeria-lhes o conforto imediato da execução sumária. Quando uma pessoa é condenada à morte não o é por avaliação objectiva da sua qualidade existencial. Aos tribunais não competem quocientes de valor da alma. Jesus ama as criancinhas e até os assassinos mas na magistratura ninguém tem nada a ver com isso. À justiça cabem os méritos dos actos. A defesa da pena de morte sustenta que um assassino pela consequência dos seus actos merece morrer. O caso do aborto tece-se noutro tear. O juízo ético sobre ele não se prende com a contabilidade dos merecimentos mas tão somente com a possibilidade de um dia o indivíduo intra-uterino a tal poder almejar. A oposição ao aborto sustenta que um assassino antes de consumar os seus actos homicidas merece viver. Não existe contradição lógica com a tese pró-pena de morte. Convém relembrar a importância da categoria kantiana do tempo. Que é como quem diz, o relógio serve para alguma coisa. O problema da defesa da vida em termos abstractos é que defenderá sempre uma vida que não a humana. Porque a vida humana não é abstracta. O que representa, afinal de contas, afirmar que se é permanentemente a favor da vida? Qualquer razoável opositor do aborto (como é o meu caso) não desdenharia aproveitar uma viagem no tempo e convencer a Mamã Hitler a abortar. Imagino-me, num alemão salivado, imprimindo todas as piruetas ao pião retórico do meu relativismo moral e obrigando a austríaca matrona a repetir comigo: "na minha barriga prussiana/ nenhum embrião fará cabana". Já agora, guarde as agulhas. O que coíbe de manifestar abertamente a minha conversão à causa da defesa da pena de morte? O mesmo que leva muitos a tentar a fortuna no Euromilhões – a probabilidade. A fatal margem de erro que pode condenar um inocente. O número. É a casca algébrica que me impede de testemunhar com a alegria da Estrada de Damasco o Evangelho da Pena de Morte. O próprio cristianismo desde cedo conviveu com a pena de morte, provavelmente para nos sugerir alguma cautela à emancipação precoce do humanismo. Quando era adolescente, e entre discussões febris em Acampamentos Evangélicos se mencionava o tópico, havia sempre uma boca pronta para referir em ritmo socrático que entre muita coisa que o Messias condenou, a pena de morte não foi uma delas (seria uma contradição narrativa inultrapassável: sem pena de morte o Salvador não poderia morrer por nós e, portanto, nenhum dos leitores da Revista Atlântico e nenhum dos não-leitores da Revista Atlântico se poderia salvar). Neste sentido, e embora não deseje forçar as matizes poéticas do meu argumento para além dos limites da flexível excelência académica desta publicação, pode dizer-se que em cada condenado à morte habita a sombra do Nazareno. "Morrer como Jesus morreu" já não quiseram cantar o Padre Zézinho nem o José Cid. Mal por mal consolamo-nos com o cancro da próstata."
Tiago Cavaco |
posted by @ 11:14 da tarde |
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27 Comments: |
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Oh Tiago, escrevi este comentário, arrependi-me e apaguei-o, mas com a repetição do argumento, acho que vou ter mesmo de perguntar. O que é que o facto de Jesus ter sido condenado à morte tem a haver com contemplar-mos isso na nossa lei?
Penso nisso mais como "Deus escreve direito em linhas tortas" (desconhecendo se uso um versículo ou um provérbio).
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Explica-me só uma coisa muito pequenina:
Essa conversão à causa da pena de morte operou-se quando?
Foi na altura da Invasão- quando ainda iam para lá em nome de valores a dar para o absoluto: como a Democracia Ocidental contra a ditadura interna dos bárbaros ou foi mais recente- assim por alturas da debandada?
É que eu não acredito que quem seja capaz de teorizar sobre a vida humana intra-uterina e a dilatar até à vida das baratas, fosse agora deixar-se influenciar por maus exemplos que estavam fora dos projectos, como aquelas cenas foleiras de Abu Grahib ................
Fiz a pergunta, partindo do princípio que a conversão não sucedeu por causa de algum facto histórico ocorrido em Portugal. Há-de ser coisa para consumo externo. Porque, interno que venda- só a fingir- só na Atlântico
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Após breve passagem pelos "comments" só me ocorre esta passagem bíblica que transcrevo (e para mim falo). Desculpem qualquer tédio que possa provocar, mas nem sempre o que nos convém será o que está certo):
"A Sabedoria que vem do alto"
13-Quem de entre vós é sábio e entendido? Mostre pelo seu bom trato as suas obras em mansidão de sabedoria. 14 - Mas, se tendes amarga inveja, e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade. 15 - Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e diabólica; 16 - Porque, onde há inveja e espírito faccioso aí há perturbação e toda a obra perversa. 17 - Mas a sabedoria que do alto vem é, primeiramente pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem hipocrosia; 18 - Ora o fruto da justiça semeia-se na paz para os que exercitam a paz.
Tiago 3:13
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Correndo o risco de desmascararem aqui um conluio faccioso: bom texto camarada. Isso devia ter chegado à Atlântico. -sami-
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ainda vai tempo de ser enviado numa garrafa...
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existem coisas melhores para colocar nas garrafas: as mais habituais
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bem, reconsidero
para a Revista Atlântico, qualquer coisa que não fosse este texto a ser enviada numa garrafa, especialmente as mais normais, seria um sórdido desperdício
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" 18 - Ora o fruto da justiça semeia-se na paz para os que exercitam a paz. Tiago 3:13a 18 " Ora lá está ! a paz q se fala aqui é SHALOM ( paz com justiça - paz a não se limita á ausencia de guerra ) enfim A PAZ Q FENECE CADA VEZ MAIS NA EUROPA E NO OCIDENTE, PORTANTO...
mm Q O tIAGO NÃO O TENHA DITO EU PERMITO-ME " ADIVINHAR !" AS SUAS INTENÇÕES E GLOSSAR AS SUAS palavras desta maneira
" dificilmente alguem morreria por um justo , mas DEUS amou-nos sendo nós ainda pecadores "
" o salário do pecado é a morte (...)"
" Sem derramamento de sangue não há remissão de pecados "
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Nota pedante: A barriga era austríaca, não prussiana.
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O DEUS q poupou o filho de Abraão não poupouo seu proprio filha " antes o entregou a morte por nós "
E ROMANOS CAPITULO 8 , grandiosos capitulo este, TB DIZ Q O DESTINO DO MENINO JESUS ERA SER O CONDENADO INOCENTE E O CORDEIRO DE DEUS QUE COM O SACRIFICIO DO SEU PROPRIO SANGUE TIRA O PECADO DO MUNDO
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«Sem pena de morte o Salvador não poderia morrer por nós»? Vindo de ti é uma meia surpresa, Tiago. Só não é completa surpresa porque é bem sabido que preferes sacrificar o conteúdo em prol do estilo. Mas, ainda assim, parece-me Cristologia do século XIX. Ou dos pastorinhos da Cova de Iria.
CC
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«Jesus ama as criancinhas e até os assassinos mas na magistratura ninguém tem nada a ver com isso». Não percebo: afinal a Bíblia não nos deve guiar, não é ela o vosso único fundamento de fé, como li aqui algures numa destas caixas de comentários?
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mp-s
"Não resta nada.(...)E a decisão sobre esse assunto passa a ser puramente humana e temporal."
Resta a Bíblia. E á sobre ela, por ser Palavra de Deus, que o cristão deve tomar as suas decisões humanas e temporais. Sobre o aborto e a pena capital, por exemplo.
Pedro Leal
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Num divertido diálogo das caixinhas do Dragoscópio, a coisa é explicada. Aqui fica:
"Manuel said... Caramba, estou impressionado é com esta generalização da faculdade de falar tu cá tu lá com a divindade que parece estar a dar-se nos States. Daqui a pouco os americanos estão a falar tanto com Deus como os portugueses com o telemóvel.
12:13 AM
dragão said... Esse é o cerne do protestantismo evangélico: um Deus portátil. Falam constantemente com Ele. E Ele com eles, não raramente. Outras vezes escutam vozes que os deixam confusos. Que lhes dão ordens problemátivas, verdadeiros testes à Fé - de assassinar à machadada um ror de gente, ou algum tipo em especial, por exemplo. Tarde demais, já em tribunal, percebem que afinal não era a voz de Deus, mas do Diabo e suas hordas. São as contingências e transtornos de funcionar em Linha Directa com o Além.
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E o cerne do catolicismo é o quê? O Deus Ali Babá que precisa de ouvir palavras mágicas para abrir o covil da comunicacao?
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eu não escreveria melhor mp-s
passas também a ser nomeado meu porta-voz
ou antes porta-voz adjunto (porta-voz é a zazie)
só já cá falta o dragão para eu estar completamente representado (mas esse também já cá está por interposta pessoa - um comentário fabuloso aquele do Deus portátil)
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mp-s
Proibição absoluta com uma exepção já não é absoluta. Alguns grupos anabaptistas sim têm o "não matarás" como proibição absoluta - não admitem sequer tirar a vida a outro ser humano mesmo como auto-defesa. Eu respeito e admiro esse pacifismo, mas, em consciência, não o posso concluir da Bíblia. Tens alguma razão acerca da "comunicacão telemovel com a divindade". Penso que usas a metáfora para te referires ao Espírito Santo... Na verdade sem a ajuda do Espírto Santo a Bíblia pode tornar-se incompreensível. Falo por experiência própria. E não quero com isto dizer que a minha interpretação seja melhor que a tua, seja mais "iluminada". Não. Acredito que teremos que responder perante Deus por aquilo que nos foi dado saber e experimentar e, portanto, não podendo esconder nada de Deus, apenas nos resta tentar a coerência e a integridade. Nem sempre conseguimos, claro. Mas essa é a luta do cristão. E é aqui que entra a Bíblia (está sempre a aparecer...), a oração, os outros cristãos, e até os descrentes. O "telemovel de Deus" toca através deles para nos colocar no caminho certo.
Pedro Leal
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um comentário muito sensato este do Pedro Leal
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eu prefiro ver este blogue transformado num saco de gatos entre protestantes e católicos
mas, incorrendo no risco dos "trejeitos ecuménicos efeminados", este último comentário do Pedro Leal não está muito longe deste excerto deste meu comentário de há uns tempos:
"a Igreja Católica de agora, com todos os seus defeitos e virtudes, não é a Igreja Católica de há quinhentos anos (com todos os defeitos - e virtudes - dessa época da Igreja)
a liberdade é um valor fundamental
as palavras não vêm mastigadas, prontas a engolir mas sim como pontos de reflexão aplicados aos tempos actuais
o catecismo da Igreja Católica exprime pontos de vista com uma autoridade especial para um católico e eu procuro reflectir profundamente nos conselhos que eles transmitem
mas sou livre de discordar (e discordo da formulação de alguns)
a minha condição de católico em nada é perturbada por essas divergências e muito mais grave seria cair na tentação de considerar que sei pensar muito bem pela minha própria cabeça sem aceitar os conselhos de ninguém (ou sem aceitar que certos conselhos têm uma fonte qie os torna particularmente importantes)
o que não impede, bem pelo contrário, repito, que a decisão seja da minha consciência e dela tenha que assumir a exclusiva responsabilidade"
na prática, julgo que estamos muito próximos, católicos e protestantes
apenas os católicos vão à ICAR buscar conselho na interpretação da Bíblia enquanto os protestantes vão a outras fontes (amigos, pastores e outros cristãos que eles consideram aptos, pelo seu exemplo ou pela sua palavra, a esclarecer o sentido da Bíblia, etc.)
mas, voltemos à guerra que a paz é uma chatice :)
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(estava com muitas gralhas)
Excelente explicação da importância dos intermediários, Tim.
Levada ao extremo, também é ela que separa a Lei da magia. Nas comunicações directas com falta de Lei, deixadas demasiado livres ao feitiço das palavras, pode-se mais facilmente voltar para a "imanência".
Por exemplo: do Tiago Cavaco escolheu de Kant a noção de tempo- que ele aplica na Crítica da Razão Pura para a explicação dos esquemas transcendentais- os que nos dão a informação do mundo- do que vem dos sentidos e é "categorizado" nos esquemas da razão. Mas, podia ter também pegado no mesmo Kant quando ele se dirige para a Moral. Quando ele explica que a Razão, acima do conhecimento das "verdades científicas" tende a "puxar" para o universal (fora do tempo- axiomático e não dedutivo) os grandes conceitos. Por isso, existe o Bem universal, não praticável, mas desejável- o tal que leva à Santidade e que estaria na base da possibilidade da felicidade humana. Não somos capazes de o praticar, mas usando de categorias universais, somos capazes de saber o caminho para no sentido das nossas escolhas- desejando-as universais- para o outro como para nós, como se de um ordem para toda a humanidade se tratasse. É neste "se" volitivo que o livre-arbítrio deixa de ser "opinião" ao sabor dos nossos desejos. O remorso também acusa os desvios, assim como a alegria acusa a satisfação pelo dever cumprido. O resto, também já dizia o Kant, é a velha dialéctica que usamos para nos enganarmos. .......................
P.S. só um detalhe: Ó Tim, meu bacano, larga lá os acrónimos que para chamar ICAR à Igreja Católica-já nos bastam os ateuzinhos militantes. Cuidado que o demónio também se insinua por siglas ahahahahaha ";O)))
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Mas o lado mais curtido do texto do Tiago vem mesmo da veia hard-rock. Até tinha tido a sua piada sair na Atlântico natalícia com aquele título à família Adams:” Uma Pena de Morte no Sapatinho” Ehehehehe
Faz-me lembrar uma tia que eu tenho que também era assim quando éramos crianças- aproveitava o encontro de Natal para se pôr a contar histórias de tragédias.
E embicava particularmente com as iluminações da árvore de Natal (por nenhuma razão cristã. Diga-se, apenas por embirranço de tudo o que podia ser alegria- sofria de acédia em último grau).
Uma vez pôs-se a predicar que também sabia de um caso em que morreu uma família inteira na noite de Natal, por causa das iluminações. E, não é que eu estava nessa altura a fazer as minhas experiências com o transformador ligado às séries das lâmpadas, mais ao presépio e ao comboio eléctrico, de modo que aquilo aumentava e diminuía de acordo com o andamento ferroviário. E, às tantas, o meu irmão teve a ideia anormal de entalar uma pata de uma vaca na linha, quando vinha o comboio a alta velocidade. Aquela treta encalhou, ninguém conseguia tirar o animal, o transformador aqueceu e BUMMMM..... deu-se cá um curto-circuito que ainda chamuscou o pinheiro e me deixou com os cabelos em pé.
O raio da profecia da acédia também se ia cumprindo para converter as alminha “dos anjinhos” à catástrofe
“:O))))
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É claro que há uma enorme mais valia na existência do Vaticano; nas Encíclicas e numa bem estruturada organização religiosa que não se mistura nem confunde com o mundo (até para neutralizar as “leituras e sermões de padres parvinhos ou ignorantes, como na semana passada se debateu como Miguel Marujo).
A liberdade absoluta de deixar à cabecinha de cada um a interpretação da Bíblia pode dar ocasião a esses "engulhos" e estorvos de que falou o Dragão.
Mesmo quando não chega a tanto, bastaria ler o David Cameira para notarmos como ele até confunde o Natal- a alegria pelo nascimento do Salvador; com a Páscoa.
O argumento de que nasceu para morrer e que o Tiago Cavaco também invoca no textinho Atlântico, é da mesma ordem daquela dos Monty Python que também teve a trabalheira toda a enterrar o gato, porque o desgraçado, mais cedo ou mais tarde, até podia morrer.
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Não tive paciência para ler tudo, até porque a parte da comparação do aborto com pena de morte é muito estapafúrdia e não merecia esclarecimento nenhum. Quem acusar de incongruência é burro.
A pena de morte é exagerada. E se eu um dia tiver que limpar o sebo a trezentas pessoas para salvar a minha aldeia e depois perder a guerra? Fosga-se.
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... a minha aldeia, e depois... Lá 'stá, só depois de cometido o erro é que reparei. Qual seria a probabilidade de eu verificar o que escrevi? Sendo este um blog religioso e que se dá ao respeito... Uns 67%.
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Oh Tiago, escrevi este comentário, arrependi-me e apaguei-o, mas com a repetição do argumento, acho que vou ter mesmo de perguntar. O que é que o facto de Jesus ter sido condenado à morte tem a haver com contemplar-mos isso na nossa lei?
Penso nisso mais como "Deus escreve direito em linhas tortas" (desconhecendo se uso um versículo ou um provérbio).