terça-feira, janeiro 13, 2009
Do servo e livre arbítrio 2
Temos um espelho curioso e tenaz. Porém em nós, somos a tensão de manipulação do outro em nosso proveito, em nosso máximo proveito. Somos os violentadores do outro, os salteadores da sua carne, deuses déspotas do nosso fechado e fugidio universo. Por dentro tanta maldade e confusão, susto mortal. Tudo depende do tamanho da nossa mentira, da tenacidade espelhada. Nenhum de nós, mesmo nenhum, aguentaria ver-se a si próprio na verdade, nem sequer num piscar de olhos. E é sabendo disso, que de tal fugimos como o diabo foge da cruz, precisamente aliás. A ética e a estética, claro. Não passam da imagem da nossa mentira. O sorriso que espelhamos, pobres de nós, as tretas que contamos uns aos outros. Os mais convictos são evidentemente os mais perigosos, os que propagam o mal com mais cegueira. Mas o que é incompreensível, absolutamente, é que o inverso seja igualmente verdade: o sentido de todos os nossos anseios, ser a bondade e a beleza. E no entanto, é confusamente o que se passa, e nenhum juízo humano pode dar conta de tal. Isto também se propaga, também se desenha, e só a voz dupla nos dá rosto, a beleza e a maldade, o crime e a santidade, a ira e a ternura. Olhar a história da humanidade, assim como a nossa própria e pessoal, é contemplar o impossível desenrolando-se. O assassinato e violação contínuos entre mães, pais, filhos, assim como o seu mútuo amor e alegria. É por isso que só a cruz nos define, uma negação, uma intercessão de contrários. A monstruosidade esplendorosa de que falam os mais lúcidos, os da lucidez que dói mais. E o mais estarrecedor, é sabermos que não estamos em nós, em nenhum momento, nem quando destruímos e oprimimos, nem quando cuidamos e libertamos. Onde afinal o nosso lugar, dá ideia que não sabemos, mas apenas entrevemos, sonhamos. Isto parece um monólogo de bêbedo, claro, ou uma impressão deprimida duma solidão assustada, o que pode confirmar-se pelo próprio sentido do que é dito: são precisamente os mais perdidos dentre nós, que sabem o que se passa connosco, eles que tocam o fundo. São aliás eles, os primeiros a reconhecer o deus que revela, e não os legalistas, que com o seu saber, expulsam a verdade dos templos.


Vítor Mácula
posted by @ 11:48 da manhã  
2 Comments:
  • At 15 de janeiro de 2009 às 23:01, Blogger Pedro Leal said…

    Vítor

    “Nenhum de nós, mesmo nenhum, aguentaria ver-se a si próprio na verdade, nem sequer num piscar de olhos.”

    Sim. E esta frase devia-nos fazer tremer. Porque se não conseguimos aguentar a verdade de nós próprios imagina o que é ficar diante do Deus que tudo conhece e que é perfeitamente justo? Claro que é Cristo que nos justifica perante o Pai – esta é a grande maravilha do Evangelho. Em vez do desespero, ou da auto-comiseração, temos a esperança.

     
  • At 16 de janeiro de 2009 às 18:45, Blogger Vítor Mácula said…

    Sem dúvida que o terror de si é o início do clamor, e a impossibilidade de nudez perante Deus a petição de cura, purificação ou mediação. Cristo vem dar muito mais que isto, mas isso é porque é generoso LOL

    Uma das Teresas, já não sei se a de Ávila se a de Lisieux, diz que numa visão outorgada por Deus viu o estado verdadeiro duma alma em pecado, e que foi tão violento e inaguentável que Deus ele-próprio teve de a suster na dor e no terror que de outro modo a teriam fulminado de imediato.

     
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