sexta-feira, janeiro 09, 2009
A Palavra
É uma ilusão supor que podemos adoptar, em directo, o ponto de vista de Deus e, a partir daí, distinguir o que é humano e o que é divino, como se fôssemos entidades que os transcendem e os fiscalizam. As consequências dessa ilusão manifestam-se quando seres humanos colocam na boca de Deus aquilo que eles dizem e escrevem como se fosse o próprio Deus a dizer e a escrever. A Bíblia está cheia de declarações desse teor. Por vezes, o que é posto na boca de Deus só ficava bem na boca do Diabo. Quem assim faz, pensando glorificar a Deus, está a ofendê-lo e a tornar impossível reconhecê-lo como a verdade e a beleza do amor infinito. Por outro lado, quando se tomam as afirmações bíblicas como ditados divinos, perde-se, irremediavelmente, o sentido da transcendência de Deus e dos ziguezagues da história humana.
Frei Bento Domingues, Público, 30/11/2008

Já nem chamo à conversa a teologia e a ortodoxia. Já muito falámos sobre o assunto. O que destaco neste trecho é a irritação, uma espécie de amargura miudinha, que borbulha por baixo das palavras. Os Bentos Domingues deste mundo gostavam que a Palavra de Deus encaixasse na sua agenda, que carimbasse a suas elucubrações religiosas. Que, aí sim, tivesse autoridade, mas uma autoridade sancionada por eles. Pregadores do desassossego, gostavam de ter uma Palavra submissa. Mas… a Palavra de Deus não é assim. Ela é que exige submissão. Ela é que tem, em si, autoridade. Em vez de ser o tal discurso humano sobre Deus, como eles gostavam, é a revelação de Deus aos homens.
Bentos Domingues deste mundo, porque ficam de fora a remoer e não vêm experimentar?

Pedro Leal
posted by @ 7:16 da manhã  
6 Comments:
  • At 9 de janeiro de 2009 às 14:11, Blogger Nuno Fonseca said…

    'É uma ilusão supor que podemos adoptar, em directo, o ponto de vista de Deus e, a partir daí, distinguir o que é humano e o que é divino, como se fôssemos entidades que os transcendem e os fiscalizam'.

    E não foi isso, precisamente, o que o Frei acabou de fazer nesta afirmação?

    §

    SOLA SCRIPTURA

     
  • At 13 de janeiro de 2009 às 11:57, Blogger Vítor Mácula said…

    Olá, Pedro.

    Curiosamente ou nem tanto, não vejo irritação nenhuma no trecho do Bento Domingues, mas tão só uma tranquila e discutível posição teológica e exegética.

    Vejo irritação no entanto no teu comentário LOL

    E agora deixemos o Bento Domingues, que conheço mal, e passemos a:

    "Em vez de ser o tal discurso humano sobre Deus, como eles gostavam, é a revelação de Deus aos homens."

    Eu diria que nem uma coisa nem outra. Tal relevaria de fazer por mútua exclusão: ou o sujeito do discurso bíblico é Deus, ou é o humano. Tenho em crer e em ler que são ambos, numa fusão mística e relacional. Nunca o autor dum texto bíblico se subsume numa espécie de transe em que Deus falaria "sózinho", por assim dizer. Isto corresponde também ao expoente máximo desta fusão, a saber: Jesus Cristo, que por ser divino não deixa de ser também e inteiramente um ser humano singular e próprio.

    abraço



    abraço

     
  • At 13 de janeiro de 2009 às 11:58, Blogger Vítor Mácula said…

    LOL abraço abraço

    deve ser um de Deus e outro meu LOL

     
  • At 15 de janeiro de 2009 às 22:58, Blogger Pedro Leal said…

    Este comentário foi removido pelo autor.

     
  • At 15 de janeiro de 2009 às 23:00, Blogger Pedro Leal said…

    Olá Vítor,

    Pois, podes ter razão, mas pareceu-me que o frei Bento estava chateado por a Bíblia não dizer aquilo que ele queria. Quanto mim reconheço que fiquei mesmo um bocado indignado (é um sentimento mais nobre e mais bíblico do que irritação… :))
    “Tenho em crer e em ler que são ambos, numa fusão mística e relacional”
    O que queres dizer com isto? Que consideras a Bíblia Palavra de Deus? Ou que é preciso saber separar o humano e divino para a aproveitarmos bem? (Concerteza consideras a palavra humana com menos qualidade do que a divina). A questão aqui tem a ver com autoridade e não com a forma como o texto surgiu. Na Bíblia tens livros históricos, feitos a partir da recolha de testemunhos, e profetas que recebem a mensagem directamente de Deus. A questão é que quando começas a validar os textos como “inspirados” ou não acabas por ficar apenas com aquilo que queres ouvir. Como o frei Bento.

    abraço

     
  • At 16 de janeiro de 2009 às 18:31, Blogger Vítor Mácula said…

    Bem, como disse eu conheço mal o frei Bento, para além das crónicas do público e uma ou outra intervenção que o vi fazer em conferências… Parece-me que ele se integra numa corrente exegética, que já vem do Agostinho, de que quando um enunciado bíblico nega, na sua literalidade, uma verdade (científica, histórica, teológica, etc) se deve interpretar de outro modo. Ele aqui parece remeter para uma baliza teológica (não poder haver contradição em Deus).
    Relativamente à inspiração, se calhar exprimi-me mal, o que eu quis dizer é que são indistintas como a humanidade e divindade de Jesus. Não porque não se possam qualificar como actos divinos e actos humanos (a compaixão ser humana e a cura milagrosa divina, por exemplo, mas veja-se: que a compaixão é divina e a cura também humana ou taumatúrgica) mas porque o sentido do acto ou palavra em jogo, requer a dinâmica mútua. Sem um, não haveria o outro. Sem palavra humana, não haveria Bíblia, como é evidente; sem relação mística não seriam textos sagrados (que exprimem a divindade). O sentido profético, por exemplo, requer invasão do eterno e temporalidade humana.

    Para responder à tua pergunta, diria que não considero a Bíblia como Palavra de Deus (essa tem que ver com a Criação, com Jesus Cristo e com o Espírito), mas como palavra humana infusa de divino. Já falámos disto aqui, aliás. Não leio os textos bíblicos como preceituários do que Deus quer do homem, mas como linguagem humana às cabeçadas com a Palavra de Deus. Não acho que os livros proféticos tenham uma inspiração diferente, por si, dos livros históricos, dos poemas épicos, sapienciais, religiosos e etc (género os proféticos serem directamente Deus, o poeta entrou em transe e aquilo é linguagem divina; e os históricos ouviu fidedignamente contar por testemunhos fiáveis…) Certos exegetas falam de micro-narrativa e macro-narrativa, mas isto não me convence muito, por motivos similares às distinções atrás referidas (textos inspirados, textos não-inspirados; textos humanos, textos divinos). Percebo a ideia, mas a macro-narrativa evolve adentro das diversas micro-narrativas que a constituem, e o sentido do todo depende tanto destas como a inspiração depende da palavra humana.

    E também acho que o diabo está metido ao barulho, biblicamente aliás ;)

    Mas estou para aqui provavelmente a empapar com mais ou menos evidências o que se calhar devo dizer directa e claramente: a Bíblia contém treta humana e anti-divina, sobretudo se lermos trechos sem os enquadrar em toda a humana peregrinação para e com Deus, de que a própria Bíblia é relato e expressão mas não acabamento.
    Resta a pergunta de como distinguir e orientar-se. Penso que a resposta está no que os cristãos sempre fizeram: em comunidade e oração (sim, mesmo o anacoreta no deserto está em comunhão activa).

    Há sempre um risco no cristianismo. Eu sei que muito gostaríamos de poder dividir o trigo do joio, seja com a infalibilidade bíblica seja com a papal, mas não penso que tal seja possível: Deus dá sempre espaço para a negação, mesmo na infalibilidade com que nos brinda (porque a há, e é essa a ideia de base da tal macro-narrativa: Deus não pode enganar). Eu vivo-a como uma infalibilidade na esperança, e não na detenção certa. Sei que há um elemento qualquer que leva a coisa a bom porto, e confio na sabedoria e amor de Deus, que mau e bom grado as nossas negações, nos vai moldando à sua essência, ou se preferires, ao Espírito. E não faço bem isto por atitude ou decisão, mas por evidência de erros nos nossos aparelhos religiosos (incluindo a Bíblia), assim como em mim. Tenho em crer que esse elemento de infalibilidade não está preso a “apenas na Bíblia” ou “apenas no sacerdócio ordenado” ou o que for. É o tal que sopra onde quer.

    Não penso que se deva temer a liberdade, bem pelo contrário. Passa-se que o único modo de não “ficar com aquilo que se quer ouvir” não me parece ser a divinização directa dos textos bíblicos ou do sacerdócio ordenado, mas uma abertura aos sinais da vontade de Deus, na Bíblia, na vida, na Igreja, etc

    Até porque no final de contas, é Deus que tem a palavra.

    Um abraço, bom fim de semana

     
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