Era uma gaiola de rede metálica, enorme. Sem tecto. Nem chuva. E nada se passava lá dentro. Seres humanos. De fora. A defendiam. Percebem. Algo iria surgir lá dentro. Do nada. Assim então a defendiam. Era necessário vedar aquele espaço de futuro. Daí a rede. Defendê-lo. Daí aquela ser metálica. Necessário olhar o espaço. Esperar. Era um ofício repleto de paciência. Até que um dia as toupeiras enlouqueceram. Não se sabe se todas ou se apenas algumas. Nem sequer o motivo. Talvez desesperassem. Surgiam do solo às centenas. E atiravam-se às redes da gaiola. Subiam. Saltavam para dentro. Pareciam querer destruir o que ainda não acontecera. Centenas de toupeiras raivosas amontoando-se na gaiola. Como cadáveres das valas comuns em tempo de peste, levantando-se num clamor de morte injusta, inaceitável. Qualquer coisa do género. Centenas de toupeiras a boca em espuma mordendo e roendo. Centenas de toupeiras escavando e arranhando o solo como se este tivesse que desaparecer. E os seres humanos atiravam veneno às pázadas, veneno branco e ácido. No entanto parecia inútil. Era como se por cada toupeira morta aparecessem dezenas, obsessivamente. Um dos seres humanos empunhava um revólver, disparando contra as toupeiras loucas. Outro lançava gasolina para cima delas e ateava-lhes fogo. E outro ainda, quase tão enlouquecido como as toupeiras, ou talvez com a volúpia de mártir que aquela excitação poderia instigar, subiu pela rede e atirou-se para o meio das toupeiras, urrando e batendo e mordendo, e finalmente desaparecendo por entre elas. E foi então que um dos seres humanos teve uma iluminação, uma daquelas intuições em que a percepção se funde com o entendimento numa compreensão imediata. Clara, súbita e inquestionável. Talvez num sonho, vira-se a si-próprio toupeira, as patas curtas e o focinho afunilado, e uma raiva sem objecto a corroer-lhe a paciência. Mas sobretudo, aquela escuridão visual, quase absoluta, e aquela intensificação sensorial do tacto, do olfacto e da audição, transformando-lhe a consciência e o pensamento dum modo que ele agora apenas pressentia, entrevia, se assim se pode dizer. De qualquer modo, sentiu-o o suficiente para deduzir o sentido da situação. Compreender. Perceber. Que o acontecimento tão esperado, o acontecimento tão preparado, eram as toupeiras. A cegueira. Qualquer coisa de súbito, de fulminantemente transformador. E a pouco e pouco, talvez numa clareza induzida pela inutilidade do esforço, todos os seres humanos acabaram por entender a situação, ou agir como tal. Por intuição, ou raciocínio, ou apenas cansaço. Desistência. E sentaram-se todos olhando o espaço de futuro agora presente, olhando as toupeiras entrando na gaiola, guinchando e espumando. Até que a última toupeira entrou, e os seres humanos colocaram então um tecto na gaiola, e as toupeiras lá dentro, uma gaiola enorme e selada e os seres humanos adormecendo sem espera nem receio ou raiva. E caiu a primeira gota de chuva. Do lado de fora do sono humano. E já não havia espaço nem tempo para poder dizer: até que um dia, ou sequer a palavra “fim”. Uma espécie de hiato, como o intervalo de substituição duma corda de guitarra que se quebre a meio duma cantiga que entretanto se esquece. Uma espécie de inexistência. A cegueira. Supõe-se que quando acordarem, estarão, por dentro, no mesmo momento que quando adormeceram. E, por fora, totalmente noutro momento. É realmente um ofício repleto de paciência. Vítor Mácula |
talvez mal direcionado este talento, no entanto escreves bem fixe, bela viajem . . .
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