domingo, dezembro 10, 2006
Uma outra Maria...
Tal como o eminente teólogo britânico James Houston a certa altura afirmou na Universidade Católica, em Lisboa, a ênfase dada a Maria pela Igreja Católica pode bem ser uma forma desta se redimir da extrema masculinização que a estrutura foi sofrendo ao longo dos séculos. Sou apologista de uma Maria mais bíblica, necessariamente mais apagada, mas nem por isso menos importante no desempenho do seu papel no contexto global da heilsgeschichte. Não pretendendo competir com Margarida Rebelo Pinto no domínio do autoplágio, aqui vos deixo a minha humilde contribuição para a obra colectiva "Os Evangelhos 2006", editada pela Firmamento há cerca de 1 ano atrás. Trata-se de um comentário ao texto bíblico do Evangelho segundo Lucas, capítulo 2, versículos 41 a 52 e, como bem se percebe, não tem por objectivo desenvolver nenhuma tese sobre a questão mariológica e é, para além do mais, um texto devocional, não académico. Todavia, gostaria de deixar aqui evidenciado que admiro muito mais esta Maria que certamente tantas vezes não entendeu...
“E eles não entenderam…” O pretérito perfeito invariavelmente usado pelos tradutores bíblicos para a forma verbal do aoristo grego sunôkan tem aqui um sentido até certo ponto enigmático. Afinal não tinha José sido alvo de revelação específica de Deus através do anjo que lhe anunciara que a criança gerada em Maria era fruto da acção do Espírito Santo (Mateus 1:20-21)? Este era afinal o mesmo José a quem o anjo de Deus viria a aparecer novamente, prevenindo-o da intenção do rei Herodes em mandar matar o Menino (Mateus 2:13). Maria foi também alvo de diversas indicações de que aquele era um Menino especial, entre as quais o anúncio, pelo anjo Gabriel, de que ela havia sido escolhida para no seu ventre gerar o Filho de Deus (Lucas 1:30-33). Além disso, a presença de Maria na festa da Páscoa é um claro testemunho da sua devoção e piedade, pois tal presença era requerida apenas aos homens. Assim sendo, por que não entenderam eles?

Ao utilizar esta expressão, o evangelista Lucas não parece pretender conferir um tom acusativo à atitude do casal. É muito mais uma constatação, quase que uma desculpa perante tal atitude tão genuína e humana de José e Maria. Afinal, eles estavam preocupados com Jesus. Noutros passos dos evangelhos temos a indicação de que este “não entender” não se traduziu necessariamente em descrença, em dúvida ou mesmo em cepticismo. De Maria sabemos que reconheceu o poder de Jesus nas Bodas de Caná ao dar indicação aos servos de que fizessem como seu filho ordenasse (João 2:5); encontramo-la aos pés da cruz (João 19:25); e, pelo mesmo Lucas, ela é contada naqueles que se reuniam com os apóstolos para orar, logo a seguir à ascensão de Jesus (Actos 1:14). A verdade é que, naquele momento, “…eles não entenderam”.

A quase inexistência de referências evangélicas à infância e adolescência de Jesus tem intrigado muitos cristãos e não cristãos, ao longo de toda a história. Surgiram mesmo textos, os quais são considerados apócrifos, que procuravam colmatar esta suposta falha dos evangelistas divinamente inspirados. A verdade é que ao surgir apenas no Evangelho de Lucas, este texto confere um profundo significado teológico à cena aqui narrada.

A idade de 12 anos era um importante marco no desenvolvimento físico, intelectual, espiritual e social de qualquer varão judeu. A tónica dessa relevância é, aliás, confirmada pelo versículo 40 no qual Lucas nota que “…crescia o menino e era confortado em espírito, e cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele”. Curiosamente, como que encerrando este intertexto, este interlúdio das coisas importantes sobre a vida de Jesus, o versículo 52 repete esta mesma ideia com as seguintes palavras: “E crescia Jesus em sabedoria, e em estatura, e em graça para com Deus, e para com os homens”.

Embora a tradição talmúdica pareça indicar que mesmo crianças com idade inferior a 12 anos devessem participar nas mais importantes festas religiosas judaicas, esta era a idade comummente aceite para tal. Esta era a idade em que a criança assumia os seus compromissos religiosos tornando-se directamente responsável pela obediência à lei. Assim, não é de admirar a presença de Jesus no Templo, a qual poderia até ser a primeira desde que, com oito dias, como mandava a Lei de Moisés (Êxodo 13:2,12), José e Maria o tinham levado àquele mesmo local (Lucas 2:21). Do que os pais de Jesus não estavam certamente à espera foi o interesse manifestado pelo adolescente Jesus nas coisas de Deus, interesse esse que surpreendeu os próprios mestres e doutores da Lei ali presentes.

João Calvino (1509-1564), o eminente reformador do século XVI, diz no seu comentário aos Evangelhos Sinópticos que, ao contrário de Mateus, que prefere passar da infância de Jesus à sua plena manifestação, Lucas detém-se neste facto que lhe merece registo. Ainda segundo Calvino “a meio da sua infância, Cristo manifestou momentaneamente o seu futuro ofício ou, pelo menos, deu uma indicação, através de um evento único, daquilo que mais tarde viria a ser”. Este foi apenas um prenúncio do carácter único de Jesus e os seus próprios pais não o entenderam. Aqui está patente a substância do carácter salvífico da sua missão, plenamente assumida na bela imagem da pomba esvoaçante que descia dos céus ao mesmo tempo que uma voz se fazia ouvir anunciando: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mateus 3:17). Anos mais tarde uma outra voz, a voz do próprio Jesus, uma voz desta feita fraca e fatigada, desiludida com a incompreensão e com a ignomínia da espécie humana viria a clamar Tetélestai – “Está consumado” (João 19:30). No entanto, este não foi um grito de morte, mas sim o anúncio da verdadeira vida. Este foi afinal o dia em que a morte morreu!

Na altura em que o adolescente Jesus foi interpelado pelos seus pais, “eles não entenderam”. Quanto mais coisas ainda nos falta compreender, a nós, homens e mulheres do século XXI? Certamente que compreendemos os rudimentos do complexo e sofisticado mundo tecnológico em que nos movimentamos e que ajudamos a alimentar. Certamente que nos sentimos habilitados a dar pormenores e explicações em relação à catástrofe que aconteceu instantes atrás no outro lado do mundo. Certamente que nos deliciamos com as imagens que nos chegam do espaço sideral já conquistado pelo poder do engenho e da astúcia humanas, esse espaço “acima” do planeta azul que nos serve de casa. Certamente que abarcamos o essencial das idiossincrasias próprias de cada grupo, etnia ou povo de modo a que possamos comunicar com eles.
Porém, já entendemos Jesus? Já compreendemos a plena dimensão do seu ministério e da sua obra? Ambrósio (c. 340-397), um dos doutores da Igreja, faz notar a simbologia patente nos três dias em que Jesus esteve “perdido”. Diz Ambrósio: “Não é por acaso que, esquecido na carne pelos seus pais, ele certamente pleno da sabedoria e da graça de Deus é encontrado após três dias no Templo. É um sinal de que ele, que foi crido morto pela nossa fé, se ergueria de novo após três dias da sua triunfal paixão e surgiria no seu trono celestial com honra divina”. Entendemos Jesus entendendo a sua ressurreição. De quanto mais precisa a humanidade para entender Jesus?

Tim Cavaco

posted by @ 5:44 da tarde  
2 Comments:
  • At 10 de dezembro de 2006 às 18:58, Blogger cbs said…

    Também dou mais valor à Maria apagada, mas com uma serenidade transcendente.

    "a ênfase dada a Maria pela Igreja Católica pode bem ser uma forma desta se redimir da extrema masculinização que a estrutura foi sofrendo"
    Concordo com a frase e acrescento a "heresia": Maria não precisava de ser virgem para ser Nossa Senhora Mãe de Deus.
    Bem ao contrário.

     
  • At 13 de dezembro de 2006 às 18:20, Blogger Luís Aguiar Santos said…

    Esse "anúncio" da ressurreição no encontro de Jesus no templo tinha-me escapado. É muito forte. Na verdade, aquando da segunda passagem dos três dias, o templo continuava presente, só que já transifigurado com Ele, seu Sumo Sacerdote para sempre (Hebreus).

     
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