quinta-feira, dezembro 04, 2008
HP

Diz o professor hebreu: se rezares correctamente, saberás imediatamente reconhecer a sua invasão em ti, e que te arrebata. O espírito abre-te às suas possibilidades.
Antes de todos os tempos Eu te amei, e amei toda a criação, olhei para ela e vi que era bela.
O mundo não é amado porque tenha sentido, mas ganha sentido ao ser amado. Sendo o significado o do amor, e não do mundo, trata-se duma dinâmica de transformação. O mundo sem sentido em que paira um significado, como que tende a dar expressão a esse significado que ele, mundo, não é. O sentido é dado, digamos assim, no olhar.
Não se trata aqui da encarnação humana do verbo de Deus, mas da sua presença executante, muito antes sequer do avô hebreu que professa, e de todas as índias e gálias e américas, desde fora do primeiro átomo da criação ao sentido da inteira história desta. O significado do mundo está dado desde sempre, e para sempre, fora portanto da temporalidade própria do seu acontecer, do mundo, e assim o move.
O acto de criação é uma dinâmica do amor divino, que transposto para a acção humana corresponde ao famigerado Amar é querer que o outro seja. Não que eu seja através dele, mas que sem apropriação despersonalizante e enclausurante, eu seja o que sou, e com-sejamos numa unidade que não anula a inteireza de cada um de nós, e que produz uma terceira inteireza que se constitui na própria união. É um analógico do famoso três em um que tanto abespinha alguns.
Olhar o outro no significado da sua criação, do outro, do que mais fundo o sustém e lhe dá sentido – isso, não o podemos. Podemos no entanto não ser obstáculo a esse olhar, não determos o outro na opacidade que reside na impossibilidade de o vermos verdadeiramente. Porque tudo o que vemos e vivemos, tudo aquilo que verdadeiramente nos toca e contactamos – somos nós próprios. As características que nos atraem, as afecções que nos movem, das actividades que nos agarram às pessoas que nos apaixonam – não passam de remissões para o que nos caracteriza, a nós, o teu cabelo a esvoaçar ao vento mostra tão só o meu anseio de liberdade, mas não o teu revelado rosto.
Enquanto eu estiver a ver, vejo-me a mim-próprio. Aqui se vê o sentido do também famigerado O Amor é cego – atira-se para fora de si, e avança.
Isto não significa que as afecções, os sentimentos, os pensamentos, o que é próprio e acontece – sejam anulados ou desvalorizados. Pelo contrário, são até valorizados, ganhando sentido e constituindo-se doação total, sem freios nem retenções. E sim que apontem para algo – o outro, absolutamente.
E não significa que as afinidades electivas, os companheirismos e as amizades e os amores, sejam superados. Mas que se intensificam na vontade que o outro se seja – a si, cada vez mais, revelado e renovado, revelando-nos e renovando-nos.
Até ao inimigo, como se sabe – o que também não anula a inimizade. Também esta é reveladora.
Neste mundo e na razão, duas plenitudes impedem-se uma à outra. Mas o cristianismo pretende dissolver sem mais, ferozmente, a impossibilidade – é esse o sentido do Serão a mesma carne, analogia da unidade trinitária, divino soco na mesa da realidade. O amor esponsal é uma das imagens vivas mais intensas da unidade amorosa. A mesma carne, a mesma substância, o mesmo ser – é de loucos.
O amor é algo de absolutamente incompreensível, e curiosa e simultaneamente, absolutamente reconhecível – tal como a vida, a que preside.
É o rosto do outro visto e vivido na pausa de nós-próprios, paradoxalmente retribuído, o que faz com que cada um é pelo amor do outro, e por este se move e vive e é – e assim nenhum se anula.
Há uma esponsalidade desmedida no cristianismo. A Trindade é evidentemente fecunda – é precisamente essa a ideia de Criação. A vida. Não necessária, mas querida e desejada na fecundidade transbordante.
O cristianismo pretende que se execute a imagem da Trindade com todo e qualquer um, com o primeiro e com o último e todos os restantes. É aliás o seu único mandamento. E raios não me venham dizer que é razoável – o que por outro lado não configura nenhuma anti-racionalidade.
Deveríamos mesmo ser capazes de amar uma pedra – como diz o irmão António, que se assusta se tudo arde.
Vítor Mácula
posted by @ 11:46 da manhã  
4 Comments:
  • At 5 de dezembro de 2008 às 13:43, Blogger Pedro Leal said…

    A questão é mesma de sempre: o amor não pode ser, por não ter poder para, um “by-pass” a Cristo. E o Cristo de que falo não é a tal “presença executante” mas a encarnação, a morte e a ressurreição histórica e localizadamente acontecidas. Como diz Paulo “Se Cristo não ressuscitou então é vã a vossa fé“ (I Coríntios 15:14). Não estou a desvalorizar o amor. Porque Deus é amor. O meu ponto é a necessidade de se acertar na porta de entrada: “Eu sou a porta” (João 10:9).

     
  • At 7 de dezembro de 2008 às 14:54, Blogger cbs said…

    Agape, o amor e O Amor...
    o outro como espelho ou como transparencia?
    o outro e O que É...
    ser é ser reconhecido?

    Há uma coisa que, nunca me tinha verdadeiramente dado conta, e que aprendi do Tiago Oliveira: aquilo a que chamamos humanamente amor, não o é, não é mais que uma sombra do Amor; todo o Amor vem de Deus, ou seja, o amor humano só se consuma quando se abre à Graça do Pai.
    Isto, que pode ser discutível ou secudarizado, é para mim uma evidência, que só o foi quando ouvi o Tiago dizê-lo.
    já o terei ouvido muitas vezes nas missas, mas o facto é k nunca tinha com a atenção desperta, lol

     
  • At 9 de dezembro de 2008 às 12:39, Blogger Vítor Mácula said…

    Olá, Pedro.

    A questão é sim a mesma de sempre: Quem é este homem?... Aqui parece-me que focamos a tensão na correspondência entre o verbo divino enquanto aquele pelo qual todas as coisas são feitas, e o verbo divino enquanto incarnação humana; ou se preferirmos, entreo modo cósmico do verbo, e o modo humano. O problema põe-se na unicidade essencial do divino (hp LOL) que se mantém nas distinções modais; ou se preferirmos: o espírito que preside a ambos é o mesmo, o sentido: transbordo absoluto de si para outro (a criação e o humano). Tu pareces-me fazer querer e crer que a única porta de comunhão para o divino está restrito à modalidade da incarnação cristã. Mas penso que já abordámos isso por aqui.

    Qualquer fé é sempre vã se não for maior que a morte LOL

    abraço

     
  • At 9 de dezembro de 2008 às 12:41, Blogger Vítor Mácula said…

    Olá, cbs.

    O outro como espelho e transparência: a verdade não se separa do verdadeiro (se o espelho não transparecer até ao fundamento dos fundamentos, é porque ainda está fosco, como aliás sempre está LOL)

    abraço, e outro para o Tiago ;)

     
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