- O nosso pai é a culpa, a dilaceração confusa, dizia-lhe o amigo ao telefone, ainda ele mal despertara nem esfumara o sonho e o esquecimento do sono, olhava a janela e o céu lá ao fundo, entrecortado por dezenas de antenas de televisão, os pára-raios, a cruz da igreja no fundo azul, Ecumenismo e divisão demoníaca são movimento do mesmo acto, dizia-lhe o amigo, Pôr o problema de quem é ou não de Cristo, releva imediatamente da negação de fé, amor, fortaleza, e ele acendeu o cigarro estremunhado, semiergueu-se e bocejou e disse Vamos lá ver, Hervé, o melhor é eu acordar, e riu, ou sorriu, o primeiro fazendo que o amigo do outro lado do fio recebesse a ironia, e o segundo nada que se notasse pelo telefone.
- À tarde passarei aí, então, de manhã quero escrever, disse o amigo. Ele desligou o telefone que largado caiu para o chão emaranhando-se no seu próprio fio, e o cigarro durou o tempo de ele absorver a impressão matinal do sonho dessa noite, em que andara arrastando-se por estreitos tubos subterrâneos sem como nem porquê, apenas isso, rastejando por túneis apertados e uma luz amarela escura, intermitente, uma sensação de desamparo, de não-saber; e durou o tempo também de suspender as tiradas do amigo num eco silencioso, o tempo de beber o copo de água da cabeceira e levantar-se espreguiçando-se, Fumar em jejum é o pior que se pode fazer, lembrou ele o médico dizer-lhe há uns anos, Pois sim.
Os putos que vendiam cavalo e outros deslizes à porta do seu prédio já estavam no seu posto e ele cumprimentou-os o segundo cigarro do dia a fumegar nos seus lábios e entrou na cafetaria para tomar o pequeno-almoço. Tentou não dar muita atenção à televisão acesa, e muito menos tocar nos jornais espalhados pelas mesas. Era feriado, corpo de deus, coisa que já não se notava directamente nas ruas da cidade, ou melhor, não se exprimia tanto religiosa e publicamente, aliás as ruas da cidade eram cada vez mais neutras e abandonadas de vida e expressão, quase não pareciam já pertencer a ninguém, cheias de anúncios publicitários e transeuntes distraídos e cansados, alguns mitras e turistas e pessoal no desenrasque, no fundo andamos todos a cavalar, é o que é, pensava ele bebendo o café, a deslizar, cansados pois; era a mesma coisa no primeiro de Maio, sinos para um e anódinos panfletos para outro.
Quais de nós vivos, quais de nós mortos, era realmente dilacerante, quando somos ou não somos alguém, algo, nós próprios, vivos e respondendo, quais os dias de revelação e acção, quais os dias e as noites; qual o tribunal capaz de tal veredicto, qual o olhar, qual a lucidez; pagou o croissant com fiambre, os dois cafés, ainda fumou outro cigarro, eram nove e meia da manhã, feriado, já havia malta a beber digestivos ao balcão, à porta discutindo, um cão ladrava mais abaixo perto do videoclube.
Quando era pequeno gostava da escola, pensava enquanto descia a pequena avenida, gostava e ao mesmo tempo detestava, eram os dias do início, que afinal nunca mudaram muito, os dias da pergunta, a que não é enunciada e está no fundo de todas as que proferimos ou calamos, sentimos ou ressentimos; entrou no autocarro, era agradável descer até ao rio, o autocarro vazio sem a marabunta do trabalho, havia qualquer coisa na escravatura moderna que ribombava de violência e perdição, qualquer coisa de inagarrável que queria agarrar toda a gente e tomar o nosso lugar, as nossas decisões, e até o que sentimos e pensamos. Esticou as pernas e encostou a cabeça ao vidro; o autocarro acelerava, ia-lhe saber bem almoçar junto à água, com a cidade maior do outro lado do rio olhando para ele e os barcos passando, ia-lhe saber bem. Vítor Mácula |
bom, deixa-me esticar as pernas e ler devagar.
Mas "e não esboroar as suas margens 2"!? cadê o 1?
ou as minhas cataratas tão piores :)