sábado, fevereiro 09, 2008 |
Um "aliado" improvável. |
Nesta questão estou com o Pedro, quando ele diz que "Olho para a história dos evangélicos e vejo que a sua grande força foi terem sido capazes de abdicar do conforto de rituais, intermediários e figurações". O Tiago aponta correctamente que essa força também é uma fraqueza e um conforto em si mesmo, mas nessa duplicidade os evangélicos não são diferentes dos católicos. Julgo que o Pedro tem toda a razão em apontar como a grande força evangélica a sua iconoclastia (que aliás não surge verdadeiramente com os protestantes mas sim com os muçulmanos). Ou já estaremos porventura esquecidos de como Zwingli encetou a Reforma na Suiça (dando ostensivamente largas ao seu apetite por carne suína em dias de Quaresma)? E depois o Tiago surge com uma atitude absolutamente pós-moderna (mais uma vez dando razão ao Pedro) quando diz que "A discussão do ritual é crucial. Nunca a Reforma nem mesmo a sua face não-conformista, mais radical e nossa, baptista, julgou poder viver a fé sem ritual. Talvez o horizonte incida na problemática do sacramento, onde as implicações são muito mais diversas que as apontadas.". Tiago aponta-me uma denominação protestante que dê verdadeira importância à liturgia que não seja por natureza sacramental? Os anglicanos ou os luteranos mantêm a liturgia porque mantêm o sacramento e não o contrário. Julgo que a ideia altamente romântica que tu ou o Tiago Oliveira acalentam é a de que se pode ter uma liturgia organizada sem valor sacramental. Ora o que contraria a tendência absolutamente natural para a dispersão e a liturgia a la carte do pastor nestas igrejas (e na católica) não é apenas uma qualquer disposição hierárquica ou filosofia pastoral, mas a consciência daquilo que se celebra. É o facto da celebração ser veículo inabalável da Graça que incute um respeito pela liturgia imutável. É a consciência do acto que se opera que incute a reverência. É a convicção que o sacerdote opera in persona Christi oferecendo de novo o sacrifício propiciatório em prole do seu povo que faz com que o acto seja não dele, mas de Cristo, e que portanto as palavras não devam ser simplesmente as que lhe ocorreram "ao fazer a barba de manhã" (como há dias falávamos) mas sim as que a Igreja conserva como seu repositório inspirado pelo Espírito. Se o acto não tiver validade para lá e apesar do sacerdote, nada o move a ser fiel a uma liturgia organizada, e em verdade, não vejo porque alguma outra coisa o deveria mover nesse sentido. O caso católico então é paradigmático. Se fores a 20 Eucaristias diferentes em Lisboa encontrarás 20 pequenas variações na liturgia de sacerdote para sacerdote. Alguns vão até extremos formidáveis, introduzindo comentários a torto e a direito, como que explicando a liturgia para o fiel ignorante (quase inevitavelmente, comentários que em nada ajudam). Mas as palavras da consagração e a estrutura geral da Missa permanecem imutáveis. E permanecem imutáveis não porque não haja desejo por parte do celebrante de as mudar, convicto de que ele saberia dizer melhor, mas porque corre o risco de celebrar uma Eucaristia inválida, ou seja, de não haver real consagração das espécies, ou com menos jargão católico, não haver real transformação do pão e do vinho em Corpo e Sangue de Cristo. Julgo que portanto se trata precisamente de pós-modernismo, aceitando benemeritamente a superfície e rejeitando o essencial, como se as duas coisas pudessem ser separadas. Mas dir-me-ás tu se estiver enganado. Luís |
posted by @ 7:33 da tarde |
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13 Comments: |
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Caro Luís, embora seja bastante pertinente o que dizes a base da discussão parece-me ser, neste caso, um pouco distinta (pelo menos da minha).
Falo em dois pontos distintos: 1- Liturgia - Em última instância, culto é liturgia. Perdoa-me o uso do original, mas em grego a palavra "leitourgia" significa, em termos gerais: "any service or ministration". Ou seja, o acto de culto é o acto litúrgico propriamente dito.
Segundo isto, e este é o ponto para mim essencial, a questão é se deixamos a litúrgia, como dizes, "à la carte" ou se deve ser feito um maior esforço de organização e com uma estrutura mais coerente em tempos temporais.
Portanto, não desejamos uma ligação da liturgia ao sacramento, como mencionas. Deseja-se, isso sim, uma liturgia com sentido, consistente e que não dependa unicamente do meu estado de humor numa determinada semana (perdoem-me a carnalidade da expressão, mas parece-me que exemplifica a tendência evangélica).
Assim, é possível, sem se romântico, não ter uma liturgia "à la carte" sem que isso implique uma ligação sacramental. Para isso bastam simples coisas como um lectionário, um saltério, umas orações... Tudo o que já faz parte do culto actual, mas com maior responsabilidade e solidez a vários níveis. Na minha opinião...
A ligação da liturgia ao sacramento faz-se através da universalização da liturgia (e nesse sentido talvez até faça muito sentido a vossa missa voltar a ser em latim). A diferença para vós é que não desejamos uma liturgia universal, isso sim está ligado ao sacramento. Mas, dar importância à liturgia (e à sua preparação) não significa universaliza-la.
2- Rituais Sobre esta matéria centro-me em apenas um ponto que me parece importante (aliás, repito-o). O argumento do suposto "anti-ritualismo" do Pedro é completamete falso. É, do meu ponto de vista, um subterfúgio que ele usa para justificar a sua demonização, habitual diga-se, a tudo a tudo o que se refere à Igreja Romana.
A Criação é por natureza um ritual. O Homem é, por natureza de criação, um ser ritual. Todos nós vivemos em ciclos (diários, semanais, mensais, anuais). Este facto sempre se manifestou na fé judaica e cristã.
Quando o Pedro diz que os evangélicos "abdicaram de rituais" mente a ele mesmo e nega a sua própria vida. As celebrações dos evangélicos não são rituais? Em quê que não são? A celebração dominical, todos os domingos, em ciclos, não é ritual? A celebração da Ceia do Senhor, mês após mês, em ciclos, não é ritual? A celebração do baptismo não é um ritual? A celebração do Natal e Páscoa, em ciclos, não é um ritual?
Por isso tenho de concordar com o Tiago Cavaco: entre os protestantes evangélicos, o conforto ainda é o de "abdicar de conforto de rituais, intermediários e figurações" para poder não dar contas a ninguém de tão sublime e subjectiva fé. Uma trágica irresponsabilidade, digo eu.
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Volto a concordar o Tiago Oliveira - apesar da discussão se estar a elevar à estratosfera... e de eu me estar a perder, lol - mas lembro que o ritual é muito mais que o ciclo do tempo, é um esquema simbólico (insisto, uma síntese) referido a esse tempo. Esse esquema não é a essencia, é a forma, mas pode e deve induzir a essencia. Não sei se é isso que o Luis quer dizer com, "correr o risco de celebrar uma Eucaristia inválida, ou seja, de não haver real consagração das espécies". Ou seja de se esvaziar a essencia e ficar a forma vazia (tou com discurso muito aritotélico :)
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Caro Tiago,
Se me parecesse que seria possível e sequer desejável a libertação do ritual, não seria católico mas provavelmente evangélico. Eu não me oponho à vossa ideia (que aliás expressaste muitíssimo bem) de que o ritual é algo de profundamente imbuído na nossa natureza e que está aliás patente na história de Israel. É aliás o que tenho vindo a dizer neste blog há posts e posts (especialmente logo no princípio). O paralelismo entre a missa católica e o sacrifício pascal judaico é até bastante evidente (e era-o ainda mais no rito latino, com o sacerdote virado para o Oriente juntamente com todo o povo e como representante deste) e é uma das razões pelas quais considero que a Igreja Católica é mais a Nova Israel do que qualquer outra igreja.
O que me parece é que vocês não estão a ser verdadeiramente coerentes com a vossa escolha denominacional porque me parece que de facto o Pedro encarna mais a ambição evangélica de despojamento de rituais e imagens.
E ainda estou à espera que me mostrem uma igreja com esse tal culto organizado que não mantenha uma visão sacramental da liturgia (Metodistas, Luteranos, Anglicanos, Episcopais, you name it...). Se mantêm todos os sacramentos ou só alguns parece-me relativamente secundário porque a celebração litúrgica prende-se essencialmente com o sacramento da Ceia do Senhor e é esse que todos eles mantêm de uma forma ou de outra com uma natureza sacramental.
Quanto à sublime e subjectiva fé, gostaria de saber como é que ela deixa de ser subjectiva enquanto não existir um Magistério e uma Tradição assumida (porque implicitamente obviamente que lá estão).
Claro que o Tiago Cavaco já devia saber que eu acho que todos os caminhos vão dar a Roma...
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Caro cbs,
Estou a falar de sacramentalmente inválida, de não haver consagração física, de comeres a hóstia como quem come puro e simples pão. Não é nada de alegórico ou filosófico.
E não é válida precisamente porque de uma forma ou de outra nunca terá a totalidade da carga simbólica do original, onde cada palavra tem um significado muito preciso e suficiente, e uma história interpretativa que sintetiza anos de Tradição. Só a palavra "consubstancial" no Credo por exemplo dava para escrever um tratado. E portanto sim, é um esvaziamento da essência. Isto não implica que não possam haver mudanças, mas elas têm que ser profundamente pensadas para manter a totalidade da fé que professamos e é próprio que professemos antes de comungar.
Eu concordo com tudo o que disseram sobre a natureza dos rituais e não vale a pena repetir. Não é isso que está em causa.
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Tiago, pondo de outra forma, existe alguma denominação protestante que preserve um culto organizado que não tenha como centro desse culto a Ceia do Senhor e que não lhe imprima um carácter sacramental (não importando agora substancialmente os detalhes teológicos sobre a forma em que a presença de Cristo se manifesta)?
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Caro Luís, não posso agora responder como deveria. O ciclo diário está a fechar-se e o meu corpo já me disse que terminou da sua canseira por hoje.
No entanto, deixo apenas uma nota. Com toda a discussão que possamos ter sobre sacramentos, da sua validade ou não, não nos podemos esquecer que sacramento é mais uma daquelas palavras não bíblicas (no sentido que não aparece na Bíblia).
O que quero dizer com isto é que a lógica sacro-ritual que falas não é ininterrupta e que a formalização dos sacramentos pela igreja não é dos tempos bíblicos. Do ponto de vista bíblico, se temos razões para crer é na não "sacramentalização do rito", que contrapõe a lógica judaica de que o ritual pode ser de alguma maneira veículo de benção.
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Caro Tiago,
Nem a formalização dos sacramentos, nem a formalização do culto. O que eu estou simplesmente a afirmar é que me parece que as duas coisas estão inextrincavelmente ligadas.
Mas fico a aguardar resposta de ambos.
Um abraço em Cristo.
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Tiago
Volto a insistir, porque acho que é importante a definição (e, já agora, porque acho que não estou mentir a mim próprio). Quando digo ritual não me estou referir de um hábito regular, a uma rotina: o culto dominical, a oração de agradecimento antes das refeições (um bom hábito evangélico), etc. Como bem lembra o Luís, ritual, na perspectiva romana, portanto, nossa culturalmente, é muito mais que isso. É uma série de procedimentos necessários, fundamentais, para se alcançar determinado objectivo. Quando esses procedimentos não são cumpridos falha-se o objectivo, ou, no mínimo, perde-se parte substancial dele. Por isso, a Missa é um ritual e o Culto evangélico não. Por isso, o Natal e a Páscoa são rituais ortodoxos e romanos, onde está incluída a Quaresma, e “apenas” celebrações evangélicas. É nesta perspectiva que digo que os evangélicos sempre rejeitaram os rituais e ás vezes, profilaticamente, o que caminha para lá.
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Pedro só um pequeno comentário:
"a oração de agradecimento antes das refeições"
E depois são os católicos que não conhecem os cristãos que os rodeiam! Então vives num país de tradição católica e não sabes que a oração de agradecimento antes das refeições está muitíssimo longe de ser só "um bom hábito evangélico" e é coisa institucional em toda a casa de bom católico (e tradicionalmente em casa de todo o católico mas agora a coisa está mais desleixada)?
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Luís,
Devem de haver muito poucos "bons católicos" :) normalmente espantam-se com esse nosso hábito, também sou testemunha disso.
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Cara Hadassah,
Podes crer que há poucos bons católicos (eu incluído). Diria mais, há mesmo poucos católicos em Portugal ponto final. As estatísticas são um embuste de todo o tamanho.
Mas garanto-te que é prática antiga no catolicismo (também em Portugal). A minha mãe foi ensinada a rezar antes das refeições, assim como todos os seus irmãos e os pais dela antes disso. E claro, como em tudo na Santa Madre Igreja, temos as nossas formulações preferidas (embora em geral seja uma área onde se toma a iniciativa de dizer qualquer coisa de original). Normalmente desenrola-se da seguinte forma:
Sinal da cruz
"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo."
Oração espontânea ou formulações tradicionais por parte do presidente como:
"Nós te damos graças Senhor pelos alimentos que vamos tomar, que reparem as nossas forças para melhor vos servir e amar" (esta é a rimar e tudo)
ou
"Nós te agradecemos Senhor pelos alimentos que nos concedeis, fruto da vossa grande liberalidade. Ajudai-nos a aproveitá-los para a nossa Salvação."
E finalmente o presidente diz:
"Glória ao Pai ao Filho e ao Espírito Santo,"
e todos respondem:
"Como era no príncipio agora e sempre, Amén."
Mas também ficam muito surpresos porque não puseram os pés num retiro ou em qualquer outra actividade eclesial digna desse nome, já que é inteiramente corrente essa prática.
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:) Luís, É curioso que todas as vossas orações são pré-definidas?
Aceitam-se orações espontâneas e sentidas? Ou é preciso aprender a orar?
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Sorry ... revendo o teu comentário vejo que tbém são admitidas: "Oração espontânea ou formulações tradicionais "
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Caro Luís,
embora seja bastante pertinente o que dizes a base da discussão parece-me ser, neste caso, um pouco distinta (pelo menos da minha).
Falo em dois pontos distintos:
1- Liturgia - Em última instância, culto é liturgia. Perdoa-me o uso do original, mas em grego a palavra "leitourgia" significa, em termos gerais: "any service or ministration". Ou seja, o acto de culto é o acto litúrgico propriamente dito.
Segundo isto, e este é o ponto para mim essencial, a questão é se deixamos a litúrgia, como dizes, "à la carte" ou se deve ser feito um maior esforço de organização e com uma estrutura mais coerente em tempos temporais.
Portanto, não desejamos uma ligação da liturgia ao sacramento, como mencionas. Deseja-se, isso sim, uma liturgia com sentido, consistente e que não dependa unicamente do meu estado de humor numa determinada semana (perdoem-me a carnalidade da expressão, mas parece-me que exemplifica a tendência evangélica).
Assim, é possível, sem se romântico, não ter uma liturgia "à la carte" sem que isso implique uma ligação sacramental. Para isso bastam simples coisas como um lectionário, um saltério, umas orações... Tudo o que já faz parte do culto actual, mas com maior responsabilidade e solidez a vários níveis. Na minha opinião...
A ligação da liturgia ao sacramento faz-se através da universalização da liturgia (e nesse sentido talvez até faça muito sentido a vossa missa voltar a ser em latim).
A diferença para vós é que não desejamos uma liturgia universal, isso sim está ligado ao sacramento. Mas, dar importância à liturgia (e à sua preparação) não significa universaliza-la.
2- Rituais
Sobre esta matéria centro-me em apenas um ponto que me parece importante (aliás, repito-o). O argumento do suposto "anti-ritualismo" do Pedro é completamete falso. É, do meu ponto de vista, um subterfúgio que ele usa para justificar a sua demonização, habitual diga-se, a tudo a tudo o que se refere à Igreja Romana.
A Criação é por natureza um ritual. O Homem é, por natureza de criação, um ser ritual. Todos nós vivemos em ciclos (diários, semanais, mensais, anuais). Este facto sempre se manifestou na fé judaica e cristã.
Quando o Pedro diz que os evangélicos "abdicaram de rituais" mente a ele mesmo e nega a sua própria vida. As celebrações dos evangélicos não são rituais? Em quê que não são? A celebração dominical, todos os domingos, em ciclos, não é ritual? A celebração da Ceia do Senhor, mês após mês, em ciclos, não é ritual? A celebração do baptismo não é um ritual? A celebração do Natal e Páscoa, em ciclos, não é um ritual?
Por isso tenho de concordar com o Tiago Cavaco: entre os protestantes evangélicos, o conforto ainda é o de "abdicar de conforto de rituais, intermediários e figurações" para poder não dar contas a ninguém de tão sublime e subjectiva fé. Uma trágica irresponsabilidade, digo eu.