domingo, junho 03, 2007
irmãos animais
«Quanto aos homens penso assim: Deus põe-os à prova para mostrar que, em si mesmos, são como animais. De facto, os destinos do homem e do animal são idênticos: do mesmo modo que morrem estes, morrem também aqueles. Uns e outros têm o mesmo sopro vital, sem que o homem tenha nenhuma vantagem sobre o animal, porque tudo é fugaz. Uns e outros vão para o mesmo lugar: vêm do pó, e voltam para o pó.»
(Eclesiastes 3:18-20).

1. Duas narrações da Criação são relatadas nos primeiros capítulos do Génesis. A mais antiga, correspondente, grosso modo, ao 2º capítulo, escrita no tempo do rei Salomão (séc. X a.C.), de tradição javista, é claramente antropocêntrica. Apresenta o homem como centro primeiro da Criação, à volta do qual tudo o mais é gerado com o propósito de o servir: a natureza como lar para o Homem, os animais como resultado da procura de um auxiliar que lhe seja semelhante, e na mesma condição a mulher, criada a partir de uma costela de Adão.

A segunda narrativa, mais tardia, ligada à escola sacerdotal, foi escrita durante o exílio na Babilónia (séc. VI a.C.), e corresponde ao 1º capítulo do Génesis. Aqui não há propriamente um centro da Criação. Deus vai criando a luz, a água, o firmamento, a terra, as árvores, as estrelas, os animais, peixes, pássaros, etc., e, em cada momento, maravilha-se com a sua obra: «E Deus viu que era bom». Só ao 6º dia Deus criou o Homem, «homem e mulher os criou», em simultâneo e em paridade.
Nesta segunda narrativa é atribuída ao Homem o domínio sobre todos os seres vivos mas, ao contrário da primeira, não lhe é conferido o poder de dar o nome aos animais – poder esse que significa uma autoridade superior, uma subjugação do nomeado. Pelo contrário. O homem é um elemento, entre outros, da Criação de Deus, na qual se insere e se relaciona como entre iguais. Parece mesmo haver aqui um inicial apelo ao vegetarianismo («Deus disse: "Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento», Gen. 1:29), apenas derrogado depois do dilúvio («Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento; eu vos dou tudo isto, como vos dei a erva verde», Gen. 9:3).

2. No entanto, este assombro com a Criação, na qual o Homem se integra plena e irredutivelmente, ficou esquecido por todo o pensamento cristão até aos nossos dias. Se a autoridade de São Paulo ensina que é toda a natureza que anseia pela libertação do pecado de Adão, esperando a redenção por Cristo, «pois sabemos que toda a criação geme e sofre de dores de parto até o presente dia» (Rom. 8:22), a teologia subsequente – amarrada ainda mais ao antropocentrismo da perspectiva cristã do mundo – tem-se negado a reflectir os factos incontestados da evolução do mundo que nos revelam as modernas ciências naturais.

Há uma forte resistência ideológica na teologia cristã em abandonar o conceito de singularidade do Homem como ponto alto da Criação (ainda que contrariado ao longo de alguns textos canónicos). Com efeito, a mudança de paradigma do judaísmo/cristianismo face aos mitos pagãos é demasiado radical para permitir um olhar neutro: onde antes o homem se integrava na natureza, agora é a natureza que se integra no universo humano.

3. No entanto, estão visão é demasiado estreita para ser satisfatória. Basta que nos questionemos um pouco. Dizia Konrad Lorenz que «o homem moderno é o missing link entre o macaco e os seres humanos». Ainda que assim o não entendamos, podemos sempre perguntar-nos em que tempo histórico se deu a mudança evolutiva definitiva entre os ramos genealógicos do macaco e dos hominídeos.
A questão fundamental com que S. Tomás de Aquino resolveu a questão da imortalidade dos animais em contraponto aos humanos («nos animais não encontramos qualquer aspiração à eternidade; só são eternos como espécie, na medida em que neles existe uma aspiração à reprodução, através da qual perdura a espécie», Summa Contra Gentiles, II, 82) ressurge com os conhecimentos científicos contemporâneos. Sabemos hoje, por exemplo, que o homem e o macaco partilham 98% do genoma. Sabemos igualmente que o homem não é produto de intervenção pontual, determinada no tempo, de um acto concreto, mas sim o resultado (ainda em evolução) de um processo que se estende no passado, ao longo de muitos milhares de anos.
Podemos mesmo perguntar, ao lado de Eugen Drewermann (Da Imortalidade dos Animais – Uma Esperança para as Criaturas que Sofrem), se são apenas os homens o objecto da salvação, as únicas criaturas merecedoras da graça, da fé e da ressurreição, então desde quando existem os homens?

4. Não deixa de ser curioso, como aponta John Gray, no seu cáustico livro Sobre Humanos e Outros Animais, que, tendo Darwin demonstrado que os humanos em nada de estrutural diferem dos outros animais, foi o zelo do humanismo darwinista que recolocou o homem no pedestal onde o cristianismo o elevou: «a ironia do darwinismo é que utiliza a ciência para sustentar uma visão da humanidade que nasceu da religião».

Esta concepção antropocêntrica da doutrina cristã (errónea porque baseada em falsos pressupostos), alimentada pelo darwinismo humanista, tem legitimado um pecado maior contra a Criação de Deus: o desprezo por toda a natureza, a manipulação industrial de todas as formas de vida e a iníqua relação com os animais, tornados mero produto comercial sem qualquer autonomia, submetidos a sofrimentos injustificados e a tratamentos cruéis, sem respeito, sem reconhecimento da dignidade inerente à sua condição de pares da obra do mesmo Criador.

Carlos Cunha
posted by @ 11:04 da tarde  
13 Comments:
  • At 3 de junho de 2007 às 23:37, Blogger zazie said…

    Que espantoso este teu texto!

    É tão importante falar-se disto- E é tão esquecida esta passagem da paridade das criaturas para o antropocentrismo.

    Ó Carlos, já podias ter avisado há mais tempo que existias

    ":O)))

    e, ainda por cima, conheces a Bíblia e os textos religiosos como eu devia saber mas não sei

    Mais uma vez é imperioso lincar

     
  • At 4 de junho de 2007 às 00:03, Blogger Luís Sá said…

    Engraçado, sendo apologista da evolução não concordo com quase nada do que aqui é dito.

    Segue resposta em formato de post.

     
  • At 4 de junho de 2007 às 00:23, Blogger zazie said…

    Eu gostei do texto por falar em regressão.

     
  • At 4 de junho de 2007 às 00:25, Blogger zazie said…

    o desprezo por toda a natureza, a manipulação industrial de todas as formas de vida e a iníqua relação com os animais, tornados mero produto comercial sem qualquer autonomia, submetidos a sofrimentos injustificados e a tratamentos cruéis, sem respeito, sem reconhecimento da dignidade inerente à sua condição de pares da obra do mesmo Criador.

    Isto é regressão

     
  • At 4 de junho de 2007 às 00:29, Blogger Hadassah said…

    "onde antes o homem se integrava na natureza, agora é a natureza que se integra no universo humano."

    Isto parece-me uma grande verdade, de resto não estou nada de acordo com o teor do texto...

     
  • At 4 de junho de 2007 às 01:17, Blogger Luís Sá said…

    zazie,

    Com todo o respeito, isso é tudo treta. Nunca se respeitou tanto os animais como agora. Aliás, nunca se soube tanto sobre os seus comportamentos, nunca tanto se quis poupar os animais ao sofrimento e nunca tanto se fez pela manutenção de espécies (não é por acaso que a Europa já não tem nada que se veja... é que já cá andamos há uns tempos com armas de fogo). A menos que consideres respeito aquele sentimento mais ou menos animista dos primitivos, mais baseado ainda no medo que sentiam pelos grandes predadores do que em grandes concepções espirituais dos animais como sendo algo a respeitar.

    O homem sempre quis dominar os animais, e sempre que o soube fazer, fê-lo. Agora sabe mais, fá-lo mais. E agora há reservas e espaços dos quais os animais são donos em primeiro lugar e os humanos em segundo, coisa impensável há pouco mais de um século atrás.

    Falarei sobre o que é central aqui amanhã ou quando me for possível. Por hoje é tudo.

    Em Cristo,

     
  • At 4 de junho de 2007 às 01:25, Blogger zazie said…

    Eu referia-me a regressão do humano. Não há evolução espiritual a acompanhar o antropocentrismo.E é um facto que foi esta passagem para o antropocentrismo na própria visão da Igreja que levou ao antropocentrismo da razão que mata Deus e diviniza o homem.

    Agrada-me muito mais o sentido primordial das criaturas em pé de igualdade. E nem é novidade, pois já to tinha dito.

    Acho que me farto de dizer isso porque é esse mundo que também estudo.

     
  • At 4 de junho de 2007 às 01:29, Blogger zazie said…

    E a questão não é do que se faz agora, a par do que também se faz tendo até maior sensibilidade. Foi um concepção mais harmoniosa da Criação que se perdeu.

    O que é importante no texto do CC é que ele mostra como a ciência herdou esse antropocentrismo da própria Igreja Moderna e acabou por colocar no topo o homem, quando, logicamente, o que podia ter feito era contextualizá-lo ainda melhor (e com mais dados) no todo da criação.


    Aliás, tu próprio citaste umas passagens de S. Francisco que iam neste sentido. Eu até fiz copy paste delas.
    Não percebo de onde vem a divergência. Daqui não há-de ser.

     
  • At 4 de junho de 2007 às 01:40, Blogger zazie said…

    Mas fico à espera do post. Até porque existe depois o outro aspecto da mensagem de Cristo ser destinada ao ser humano e não aos bichos.

    Pelo que li do Gray nem me agradam nada as conclusões a que depois ele chega.
    Ou seja, agrada-me este aspecto "ecológico" com as Criaturas em plano de igualdade em vez do excesso de antropocentrismo em que o mundo existe para o servir. Mas não me agrada as deduções éticas (para os próprios humanos) que se podem fazer à conta disso.

    À parte esse aspecto não sou nem deixo de ser apologista da evolução das espécies. É teoria científica com grandes probabilidades de estar certa, ou andar por lá.
    Mas nunca mudarei a minha visão lendária à custa disso. Ossos do ofício. Era lá capaz de deitar fora todos as versões dos paraísos
    ":O))

    Do evolucionismo o que ainda mais curto são as pedrinhas e a fezada de Beringer, que foi assim que eles começaram

    E também curto muito aquele prémio Nobel: o Chonosuke Okamura, que "descobriu" o Homo sapiens miniorientalis ao microscópio

    ":O)))

     
  • At 4 de junho de 2007 às 01:52, Blogger zazie said…

    Estou-me a lembrar que o CC já escreveu coisas muito interessantes acerca do humanismo contemporâneo. Uma delas foi por causa da legalização do aborto.

     
  • At 4 de junho de 2007 às 11:17, Anonymous Anónimo said…

    É sempre divertido ver pessoas inteligentes e cultas a discutir ficção como se fossem notícias.
    Em que momento, na vida deste tipo de crentes, se dará a paragem cerebral?
    O barro? A costeleta?
    Tenham dó!

     
  • At 7 de junho de 2007 às 16:03, Blogger cbs said…

    Adãozinho
    parece faltar-te alguma educação sentimental...

    Sei que deves ter boa intenção... dizia o velhote Jean Jacques que não há màs intenções, que todos os homens são naturalmente bons, e sobretudo os selvagens...
    o que conta é a intenção, meu, be cool

     
  • At 7 de junho de 2007 às 18:30, Blogger zazie said…

    adãozinho não percebe que as pessoas estúpidas são aquelas que só conseguem falar daquilo que tocam ou cheiram.
    Não existe trabalho intelectual com as ventas enfiadas na realidade.

     
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