segunda-feira, dezembro 15, 2008
Da verticalidade horizontal

para o Tiago Cavaco


O problema da fé é evidentemente o seu núcleo de dureza extrema, a sua essencial inumanidade. Falemos da fé desde a sua abordagem primeira: que há Deus, que uma força criadora e consciente preside e produz absolutamente tudo, e que tal força deseja falar e haver-se pessoalmente comigo.

Ao seguirmos o aviso do próprio, e nos fecharmos no quarto sem ninguém, ajoelhado à beira da cama à uma da manhã rezando, confrontados com a primeira interpelação: Acreditas tu que Eu seja? é com algum assombro e destemor que noto em mim, que a mais adequada imagem para este embate básico da fé com que me debato, precisamente – é a luta nocturna com o anjo, o tornar-se-me como uma ferida na perna, que me desorienta os passos. Ou no estrondoso dizer de Lutero: O demónio? Vou com ele para a cama todas as noites. A fé trata deste combate em mim, aí começa: quando abandonados como esterco todos os hábitos e procuras culturais e religiosos, e até inúmeros pessoais; quando todo e qualquer véu rasgado ou caído se requer, e estar frente a frente com Deus, como é verdadeiramente isso em nós? Qual a minha fé, viva e verdadeira, palpitante como palavras que me ardessem nas veias e algo sussurrassem na noite da alma?

Noto assim, com temor tranquilo e tremente, que um certo não-saber, uma tensão de dúvida, reside no nervo central desta fé, é parte da sua dinâmica interpelativa; o poder dizer não à interpelação livre, inclui de sobremaneira a possibilidade de negar-se a própria validade e realidade da interpelação.

Esta apresentação de si que a própria fé traz, assusta e abala, é certo, no sentido em que faz da fé um risco e uma esperança, uma afirmação e um anseio, uma mudez e um chamamento; tranquiliza porém, pois depõe-nos no assumir e enfrentar da nossa própria fragilidade e limites, a nossa cegueira intrínseca. Ficamos a saber que somos como crianças com anseio e imaginação que extravasam em absoluto as nossas próprias condições de existência e vida; que somos um excesso soçobrado de nós próprios, que somos o nosso próprio e contínuo fracasso. Qual de nós alguma vez levou os desejos e sonho que transporta até à sua plenitude? Ou sequer um que seja, neste entrelaçamento feroz que somos?

Esta fé é uma larva do horizonte de papel que somos e vivemos, uma inconcebível borboleta que só Deus pode criar, ou então pura cinza esboroada no tecido da vida, pura mudez anterior e futura.
Nesta tensão se constitui a própria fé, numa provação intrínseca, uma força que cresce na medida imanente da sua própria negação; uma brisa suave, uma semente de mostarda, um sem-nome que nomeia.

Há um castelo, uma porta estreita, e ninguém tem chave que seja; ninguém tem chave que se seja.

Vítor Mácula
posted by @ 3:20 da tarde  
2 Comments:
  • At 24 de dezembro de 2008 às 19:38, Blogger cbs said…

    Acredito que tenho um tesoiro, Vitor, que possuo a chave da porta estreita...e creio que tu também.
    Deve ser a única coisa que nos permite esse temor tranquilo, temente mas seguro, que julgo essencial da religião aberta, essencial do evangelho cristão.

    A tensão que referes, julgo eu.
    Bom Natal. abraço

     
  • At 29 de dezembro de 2008 às 12:35, Blogger Vítor Mácula said…

    talvez.

    se o tesouro nos (de)tiver a nós ;)

    continuação dum santificante Natal, bom ano e abraço!

     
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